A Biblioteca da Meia-Noite: ótimo retrato da depressão diluído numa boa dose de açúcar


Avaliação: 4 de 5.

O que acontece quando a gente simplesmente desiste? Tem hora que a vida parece insuportável demais e as coisas ao redor perdem o sentido – e esse é o cenário da ficção especulativa de Matt Haig, a Biblioteca da Meia-Noite. Uma história delicada sobre a depressão mundana que, entre analogias e fantasias, traduz crises de identidade universais. Sensível, direto e lúdico, o livro é uma epifania que se entrega, até demais, ao amor brega pela vida.

Nora está tendo um dia particularmente difícil no meio da sua vida sem graça, até que cede e decide se entregar aquela vontade excruciante de sumir, e vai parar na Biblioteca da Meia-Noite – um limbo onde pode viver todas as vidas que não escolheu.

E se eu não tivesse desistido da natação? E se eu ainda namorasse aquela pessoa? E se tivesse seguido sua paixão pela música? A nossa vida é um assombro de “E se” sem fim, que se amplificam em fantasias melhores quando a realidade se mostra um horror, que a gente deduz ser fruto de uma série de escolhas erradas – e esse é exatamente o estado emocional super saudável de Nora.

O livro dos arrependimentos é o primeiro que Nora pega na sua Biblioteca pessoal, e é como um buraco negro que drena toda sua vitalidade. Pesado e doloroso, como são os arrependimentos que carregamos, esse é o ponto de partida dessa grande sessão de terapia lúdica promovida por Matt Haig.

A Biblioteca da Meia-Noite é um mergulho na mente depressiva de alguém que deixou de tentar há muito tempo. Sem julgamentos ou lugares comuns, Matt Haig vence a barreira do estigma da depressão e cria uma personagem mundana que convive com a doença, e, por meio dela, ilustra os sentimentos de crises e desespero reais de alguém que a enfrenta – e não de alguém que acha que sabe como é conviver com essa melancolia perene.

Na tendência da física quântica e dos multiversos, o autor explora essa nossa agonia de preservar os fantasmas do que poderíamos ter sido, mas não fomos. Ao viver cada decisão que se arrepende, no entanto, Nora percebe como sua perspectiva sobre as coisas era deturpada – nossa memória não é confiável, e poderíamos nos surpreender com a capacidade que temos de mentir para nós mesmo apenas para fugir da vida a nossa frente.

Com analogias interessantes, Matt Haig não cria uma história particularmente criativa ou inovadora, mas é a sensibilidade de abordar sentimentos tão íntimos e delicados que fazem o limbo da vida de Nora tão envolvente, e relacionável.

Esse foi um livro muito pessoal para mim, porque me enxerguei em Nora num montante além do natural ou saudável – e tive um vislumbre das sessões de terapia que preciso fazer haha. A verdade é que a depressão constrói um labirinto de emoções e nos coloca bem no meio dele, tão longe de enxergar uma saída, uma jornada solitária e distante de qualquer propósito – e continuamos vagando sem consciência e intenção nenhuma, uma vida apática que nos cerca.

A primeira metade do livro é divertida, desafiadora e instigante. A Sra. Elm, bibliotecária da consciência de Nora, é incrível e, sinceramente, acredito ser a própria consciência da personagem – afinal, a gente tem uma voz sábia dentro da gente que deliberadamente ignoramos por jogar verdades difíceis em momentos complicados da vida.

Toda a construção a Biblioteca, as analogias e a logística que o livro impõe são fascinantes. Apesar dos diálogos flertarem com metáforas, mas acabarem para analogias explícitas, dá para entender a escolha do autor em transformar essa história em algo lúdico, mas didático o suficiente para não perder o leitor ou deixar coisas subentendidas demais. Até o uso da filosofia, de forma contida e (muito) superficial, acabam enriquecendo a narrativa.

No entanto, o livro escolhe caminhar com certo conforto – o que torna a narrativa um pouco redundante e, até certo ponto, conveniente para a protagonista. Suas outras vidas são megalomaníacas: campeã olímpica, estrela do rock internacional, dona de vinhedo na California – a mensagem de “que temos potencial para tudo isso” é bem legal, mas e as vidas que poderiam ser mais difícil que a atual?

Acredito que nessa ânsia de mostrar que a grandeza das coisas não é sinônimo de felicidade ou satisfação, perde-se a oportunidade de trabalhar questões diferentes que vão além do luto – tema quase onipresente nas diversas vidas de Nora. O foco da dor e desespero da personagem sempre estão atrelados a alguém que não faz parte do seu convívio mais (irmão, pai, amiga) ou o medo de perder alguém – só que existem outras questões complexas que poderiam ser ao menos pinceladas.

O fato de Nora sempre viver o sonho de outras pessoas me pegou – uma mensagem redundante, mas que não atrapalhou a fluidez da narrativa – o livro foca no daddy’s issue e inventa algo conveniente para a mãe de Nora nunca ter a chance, a discussão e o destaque que o pai tem. É um lugar comum e frequente nas narrativas a crise de identidade ser atrelada ao pai, e mãe aparecer como uma figura de suporte e amparo – e isso é um reforço do patriarcado, machismo anulando a influência da mãe na trajetória dos filhos.

(Comentário avulso: Um filme que me incomoda muito com isso é Piratas do Caribe: A Vingança de Salazar, no qual os dois adolescentes vivem conflitos com o pai e simplesmente ignoram a importância, presença e cuidado da mãe. Largam tudo para trás e se comportam como órfãos, é um absurdo tremendo).

(Comentário avulso 2: em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, uma história que também explora o multiverso e nossas outras vidas em outros lugares, esse estigma da mãe suporte é jogado fora e, finalmente, temos uma história onde ela tem o papel central no desenvolvimento da filha – mas ainda são histórias restritas a cultura oriental, mães ocidentais injustiçadas).

Então a gente chega ao final: redondo, perfeitinho, mas extremamente piegas – páginas e páginas preenchidas com “a vida é irada, bora curtir”. O discurso vai crescendo conforme Nora muda e aceita a sua realidade, e sua vida, no entanto, para alguém vivendo o auge de um episódio depressão, a conclusão pesa a mão na noção de que a vida linda – poderia ser algo mais sutil, menos Matthew Quick.

Não tem nada de errado com a mensagem, com a transformação positiva de Nora e o tom otimista e compreensível em torno da depressão e da valorização da vida. É incrível que a personagem comece a enxergar tudo sob uma nova perspectiva, que a noção dos seus problemas diminuiu e ela consegue ver esperança além do caos que está sua vida. Porém, o tom poderia ser mais brando, pois, por vezes, flerta com a noção de que Nora era dramática demais – e sim, a depressão coloca esse filtro, mas não da para tirar ele dos olhos de uma vez, com um telefona.

A Biblioteca da meia-noite é uma leitura muito individual e pode ressoar maior em alguém que se identifica mais com a personagem. É uma história sensível que conforta com compreensão o estado de alguém que já meio desistiu de tudo está vagando – e Nora mostra como é bom encontrar outra pessoa doida que entende exatamente essa situação. No entanto, a escrita de Matt Haig, por vezes, pende para um lado mais explícito e coach demais comprometendo um pouco a magia da coisa toda.

A visão de homem branco sobre a vida, mesmo com uma protagonista feminina, não deixa de ser um tanto quanto limitada o que, também, interfere na história – poderia ser menos redundante e universal caso o autor tivesse escolhido coisas mais específicas para a personagem, que, no fundo, é meio genérica demais. Apesar de tudo, o que fica é a mensagem de que somos puro potencial de nós mesmo (uma verdade que dói quando deliberadamente sabemos que não estamos sendo tudo que poderíamos, mas conforta saber que, ao menos podemos ser, de algum jeito).

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