Uma experiência imersiva leve e incrível, Entergalactic combina o clichê de uma comédia romântica gostosinha com cultura, arte e uma vibe hipnotizante! Difícil de categorizar, o “evento”, como definido pela própria Netflix, é um projeto autoral de Kid Cudi com o diretor Fletcher Moules – e uma das animações mais interessantes e originais dos últimos anos.
Entergalactic é um filme? Uma série de televisão? Um álbum visual no estilo Beyoncé? Difícil dizer, o projeto se transformou ao longo dos anos e, no seu lançamento original Netflix, resolveram chamá-lo apenas de Evento. Produzido por Kid Cudi, artista multifacetado, ele é co-responsável pelo roteiro, faz toda a trilha sonora original e dubla o protagonista, Jabari, jovem grafiteiro que, finalmente, vê sua carreira decolar.
De mudança para seu mais novo apartamento ~cool em Manhattan, Jabari conseguiu um excelente contrato com uma renomada editora de quadrinhos para transformar seu personagem dos grafites, Mr. Roger, em uma graphic novel. Enquanto carrega seu Kaws, com muita dificuldade, pelo elevador, ele encontra Meadow, sua vizinha gata – mas isso ele não vê, ainda. O meet-cute dos dois demora um tempinho para rolar.
O charme dessa história não está no enredo, previsível de um jeito aconchegante, e nem no na evolução complexa de personagem, que não acontece. Jabari (Kid Cudi) não passa por uma grande transformação ou uma experiência intensa de crescimento pessoal, e nem Meadow (Jessica Williams). Os dois atores, de um jeito leve e natural, entregam uma excelente performance enquanto emulam uma história essencialmente rotineira, seus personagens existem mais como um espectro, uma vibe que se completa por toda a atmosfera criada pela animação.
O mais legal em Entergalactic é essa vibe autêntica que, combinada com a trilha sonora original do álbum de mesmo nome de Kid Cudi, cria esse grande vídeo-clipe que foca no detalhe dos seus personagens, ao invés de seguir as fórmulas de enredo padrão que se espera dos filmes ou séries. Entergalactic é experimental, e usa a trama e os personagens para apresentar uma colagem multissensorial de arte – presente de diversas formas ao longo da narrativa. O filme é cheio de referências e, nem Aranhaverso escapa, com uma sensação de “Miles Morales, você cresceu?” incrível <3.
Optar por conta essa história simples em animação a enriqueceu de diversas formas, principalmente para criar mais identidade e discussões pessoais no universo de cada personagem sem torná-las expositivas ou superficiais. Mr. Roger ganha vida dentro da imaginação de Jabari e confronta seu criador de forma agressiva sobre o conflito de permanecer fiel a sua arte, ou se vender as demandas do mercado – algo que apenas o surrealismo orgânico da animação é capaz de comunicar de forma eficiente e original.

Meadow também é artista, a fotografa tem seu trabalho reconhecido e se prepara para uma importante exposição coletiva. A colega artista, Nadia (070 Shake), introduz sua arte com “só me deixa tensa que as pessoas igualem Nova York a cinza e escuridão, quando a cidade é loucamente colorida. Até as pessoas são tão coloridas. Então, no meu trabalho, tento mostrar isso” – essa é uma declaração sobre Entergalactic, tão colorida e, ainda assim, seus protagonistas optam pela arte em preto e branco, criando esse contraponto.
Uma história na qual dois vizinhos gatos e artistas se apaixonam não tem muito como dar errado, não é? Os dois tem um primeiro date perfeito e, emendam em uma sequência gostosinha de encontros românticos e divertidos, espontâneos o suficiente para que ambos, que não estavam procurando alguém no momento, se apaixonem de forma leve e saudável – mas isso é uma comédia romântica, então rola um drama com a ex, Carmen (uma Afropaty perfeita na voz de Laura Harrier).
E o encanto de Entergalactic é justamente a precisão de abordar todo o recorte racial e fazê-lo ser sobre a rotina banal de profissionais em ascensão e sua vida amorosa. Jabari enfrenta o desagradável comentário do seu colega de trabalho porto-riquenho, que diz “Mr. Roger é muito violento, talvez você devesse deixá-lo mais brando para agradar a chefia” – ao que sabiamente decide ignorar. No entanto, a questão racial é um contexto importante, mas que jamais se torna o plot dessa história leve sobre jovens negros dando certo em Nova York – e a gente PRECISA de histórias assim, negros no centro de enredos clichês e gostosinhos.

Outro posicionamento sutil e perfeito de Entergalactic é o reforço da masculinidade positiva dos personagens. Jabari conversa sobre seus sentimentos com a irmã mais velha, ouve seus conselhos e absorve a visão dela sobre a situação – e também troca bastante com seus amigos, Jimmy (Timothée Chalamet) e Ky (Ty Dolla $ign), corrigindo até quando este insiste em chamar as meninas de bitches. O elenco conta ainda com outras grandes participações especiais, como Jayden Smith, Macaulay Culkin, Vanessa Hudgens e Christopher Abbott – casting que traduz de forma orgânica as interações multiraciais na realidade desses personagens.
Veredito
Entergalactic é uma experiência tranquila e envolvente, com direção impecável e um ritmo perfeito. Embalada pela trilha sonora original de Kid Cudi, esta se transforma em mais um elemento que cria camadas e nuances a uma história que acontece muito mais no íntimo do que no diálogo explícito de seus personagens. Uma comédia romântica clichê e aconchegante, essa é uma animação madura que discute o amor em tempos de dating apps, e a carreira que mistura ideias com capitalismo. Seja um filme, uma série, um quadrinhos animado ou um álbum visual (ou tudo isso), Entergalactic é uma obra de arte leve e acessível, que encanta pelo romantismo banal.
