Precursora das sitcoms e o maior sucesso dos anos 1950, ‘I Love Lucy’ é um ícone da cultura pop norte-americana e o centro do novo filme de Aaron Sorkin. Apresentando os Ricardos é uma cinebiografia que abrange os bastidores desta comédia pastelão clássica, no entanto, perdido em sua empolgação, o cineasta infla o filme de temas e abordagens, sendo esta sua obra mais enciclopédica e cheia de retalhos, infelizmente.
Lucille Ball está vivendo sua pior semana! A protagonista de ‘I Love Lucy’ foi acusada pelo fofoqueiro Walter Winchell de ser membro do Partido Comunista, e, na década de 1950, os EUA viviam sob o Macarthismo, onde pessoas eram presas e carreiras acabavam por causa do suposto envolvimento com o comunismo – chamado de atitudes anti-americanas. O maior problema é que, tecnicamente, a acusação procede.
Em meio a tensão de ter o programa cancelado, a carreira destruída assim como o emprego de todos que fazem parte da equipe, Lucille e Desi, seu marido e dono da produtora do programa, decidem continuar trabalhando normalmente e gravar o episódio semanal de ‘I Love Lucy’ mesmo com todos profundamente estressados. Apresentando os Ricardos se passa durante essa semana, na qual Lucille odeia o roteiro e a direção do episódio, Desi e os patrocinadores receiam sobre o futuro do programa, a equipe tem várias questões e o casamento dos protagonista está azedando.
Aaron Sorkin fez sua carreira brilhante e premiada com suas notáveis cinebiografias. O roteirista é conhecido pelos seus diálogos rápidos e afiados, tramas psicológicas, o dinamismo das cenas e paixão pelos bastidores de celebridades polêmicas. Em Apresentando os Ricardos, Sorkin não consegue disfarçar seu entusiasmo com a história e tudo que ela representa, cheio de boas ideias, o cineasta peca pelo excesso e erra ao colocar tantas pautas e estilos em um único filme.
O longa tem praticamente três linhas narrativas: o presente, o passado e os flashbacks mais passado ainda. O presente é completamente dispensável: o mockumentary é divertido, mas sem contexto ou serventinha dentro da história, principalmente para quem não é familiarizado com o universo de ‘I Love Lucy’ – se torna confuso e despropositado dentro da obra como um todo. Uma bagunça que só confunde a audiência.
A produção do episódio semanal envolto em tensão do que pode acontecer caso o governo implique com Lucille Ball e arruíne sua vida é a parte mais interessante do filme. Podemos ver como Lucille era mais do que a estrela do show: inteligente, destemida e, acima de tudo, leal – com muita ética e compromisso com seu trabalho! Lucille entendia de comédia, era extremamente perfeccionista e, por vezes, insensível. Aaron Sorkin faz questão de distanciar a imagem de Lucille da personagem Lucy do programa, mas, ao fazer isso, deixa o show em quinto plano e perdemos a leveza que a comédia se propunha a oferecer na época.

Curiosidade: I Love Lucy foi uma sitcom norte-americana no ar entre 1951 e 1957. É tida como um marcado da história da televisão! Lucille Ball e Desi Arnaz foram revolucionários na época e conseguiam, semanalmente, uma audiência de 40 milhões de expectadores – era uma fenômeno. I Love Lucy foi o primeiro seriado a combinar comédia, teatro, radionovelas, e o estilo de produção de filme (era tipo um Sai de Baixo! – o seriado brasileiro tendo muita influência de I Love Lucy) Eles usavam mais de uma câmera para gravar os episódios, algo incomum na época!
O formato da sitcom aparece apenas em projeções de Lucille, da atriz imagina o que poderia ou não funcionar para o show. Para quem não tem essa familiaridade com ‘I Love Lucy’ (eu, por exemplo), faz falta nos aproximarmos do programa, assistirmos a um trecho de episódio sequer. A homenagem ao formato do show é muito bem executada e dialoga bem com a proposta da personagem, mas tira do filme a aproximação, a conexão da audiência com o programa. Gostaria de ter visto mais dos Ricardos: Lucy (Lucille Ball) e Ricky (Desi Arnaz). Lucille era uma atriz de comédia, esperava-se que o filme tivesse um pouco mais de comédia, não uma interpretação sombria cheia de sofrimento.
Quem realmente se destaca em Apresentando os Ricardos é Nicole Kidman. Criticada à época da escalação devido a diferença de idade com o momento retratado da personagem e a falta de semelhança física, Kidman oferece uma interpretação respeitosa, não apenas uma cópia vazia. Seguindo uma tendência positiva e interessante no universo das biopics, Aaron Sorkin deixa de lado a necessidade das transformações físicas chocantes, permitindo o talento de Nicole Kidman florescer, e a atriz entrega tudo: surpreende com as raras cenas de comédia corporal de Lucy e sua voz fina, e a transformação para Lucille, uma mulher assertiva com a voz confiante e cortante.
Junto com Javier Barden, que interpreta Desi Arnaz, marido de Lucille dentro e fora das telas, o casal tem uma áurea vintage poderosa e carregam a bagunça do enredo com maestria. Desi Arnaz foi um artista cubano naturalizado americano completamente contra o comunismo. Javier Barden, normalmente, é escalado para viver um latino charmoso e poderoso e é justamente essas características que oferece ao personagem.

O roteiro de Aaron Sorkin faz questão de enfatizar o quanto Lucille e Desi foram precursores da TV contemporânea e quebradores de padrões. Lucille era mais velha do que Desi, um tabu enorme na década de 1950! Além disso, com licença poética do filme, Sorkin insere a trama real de quando o casal queria retratar a gravidez de Lucille no seriado – na época, era impensável colocar mulheres grávidas na televisão! O filme retrata, ainda, o ego masculino ferido de Desi pelo sucesso da esposa e como esta, fruto de sua época, queria fazer de tudo para salvar seu casamento e ajudar o marido menos bem-sucedido. Um fato curioso, a produtora de Desi existe e foi responsável por franquia como Star Trek e Mission: Impossible.
Para os fãs de bastidores do showbusiness norte-americano, Apresentando os Ricardos busca explorar bem essa parte: temos a relação com os patrocinadores do programa e o canal, as picuinhas da sala dos roteiristas (particularmente, uma das melhores e mais coesas parte do filme, deliciosa de assistir), os atritos do elenco, enfim, está tudo ali. J.K. Simmons e Nina Arianda são os atores coadjuvantes de ‘I Love Lucy’ e estão excelentes, com o veneno perspicaz e críticas ácidas atuais, porém, a dimensão das suas questões poderiam ser mais exploradas e, ao apenas pincelar tais temas deixa uma sensação de correria, um assunto inacabado e mau-explorado. O mesmo acontece com os roteiristas e showrunner do programa, onde são vários personagens com papéis discutíveis.
O roteiro inflado de pautas, ideias e abordagens resultou na direção perdida de Aaron Sorkin. Existe um excesso de estilos e recursos narrativos que conferem a nítida sensação de colcha de retalhos. O mockumentary não funciona, traz nomes que apenas quem realmente é fã do seriado conhece, deixando o público confuso com essas cenas dispensáveis. Além disso existem os flashbacks, a visualização de Lucille sobre como vai ficar o episódio, enfim, uma bagunça. Apesar de dirigir com excelência Nicole Kidman e Javier Barden, existe uma cena de sexo desastrosa que mina a química do casal! Sorkin ainda falha, por vezes, em representar a força de Lucille em tela – ela está presente no texto, mas as cenas não são dirigidas de modo a potencializá-las.

Aaron Sorkin caminha de forma tênue e perigosa em relação a representação feminina, tendo errado o ponto em certas cenas – o que confere uma ideia confusa sobre as impressões do cineasta, algo que ele faz questão de querer mostrar. Por vezes, o ciúme de Lucille parece injustificado e, assim como Desi faz com a personagem, a sensação é que Sorkin emula o gaslighting na audiência: Lucille acha que Desi a está traindo, mas em momento algum vemos pistas disso, pelo contrário, o marido sempre parece apaixonado. Além disso, Sorkin traz luz a rivalidade feminina de bastidores entre Lucille e a coadjuvante Vivian, algo mal explorado e que deixa um sabor amargo – principalmente pela questão de distúrbio alimentar. Esse e alguns outros aspectos relacionados a vivência das mulheres são apenas trazidos, mencionados, mas nunca discutidos e aprofundados de maneira satisfatória, algo que os tempos atuais e a história exigem (se não tem nada construtivo para dizer, não diga)
Apresentando os Ricardos deixa claro que a paixão pode se tornar nosso calcanhar de aquiles! O filme tem tudo que Aaron Sorkin adora, é cara do cineasta e seu projeto mais ousado e fora do padrão. No entanto, a tentativa de acompanhar Lucille Ball nessa empreitada criativa lhe custou caro: o filme é uma bagunça, peca pelo excesso e esquece de se divertir, essência trazida pela protagonista. Aaron Sorkin prova ser o excelente roteirista aclamado que é, com seus roteiros complexos, dinâmicos, por vezes enciclopédicos, mas cheios de suas marcas registradas, mas que, infelizmente, não foram transponíveis de maneira eficiente pela sua direção. Apresentando os Ricardo é um filme divertido com atuações ímpares, mas que fica num limbo, não agradando nem aos fãs assíduos de ‘I Love Lucy’ e nem apresentando de maneira eficiente o seriado para aqueles que não conhecem.

Veredito!
Apresentando os Ricardos explora o medo do que está por vir ao mesmo tempo que visita cada aspecto da visionária produção de ‘I Love Lucy’! Além da perseguição ao comunismo, o filme, por meio de mockumentary, flashbacks, brigas, brincadeiras, canto e dança, também, aborda outros temas como a gravidez da personagem, a possibilidade do marido a estar traindo, os bastidores da comédia, picuinhas da sala de roteiristas, problemas com patrocinadores e produtores executivos, como os coadjuvantes do seriado estão insatisfeitos, o problema da representação feminina, enfim, o brilhante Aaron Sorkin se perde em meio a tantos temas. Um roteirista excepcional, Aaron Sorkin se permite ousar em algumas cenas, porém não consegue encaixá-las de modo eficiente e orgânico em seu texto, pecando pelo excesso e construindo uma colcha de retalhos sofisticados. Com atuações impecáveis, Nicole Kidman e Javier Barden se destacam e entregam interpretações cheias de personalidade e sutilezas das suas figuras icônicas de ‘I Love Lucy’. O filme tem um ritmo bom, tem a identidade de Aaron Sorkin, mas negligência o principal aspecto de Lucille Ball, a comédia. Apresentando os Ricardos esconde toque deprimido atrás de uma história brilhante e glamourosa.

Indicações ao Oscar 2022
* Melhor Atriz – Nicole Kidman
* Melhor Ator – Javier Bardem
* Melhor Ator Coadjuvante – J.K. Simmons
