No Ritmo do Coração é um encantador clichê para toda a família

Como um abraço carinhoso e confortável, No Ritmo do Coração é um clichê familiar coming-of-age com um toque autêntico e necessário: o núcleo principal é composto por uma família de surdos, cuja a filha é a única pessoa que ouve. Uma história comovente que mexe com nossos sentimentos, nos deixa com um sorriso no rosto e a empatia renovada, no entanto, tantas emoções ofuscam algumas lacunas no roteiro.

Uma família humilde e engraçada de uma pequena cidade do interior, acompanhada da filha adolescente responsável e super talentosa que sonha em perseguir o sonho de ser cantora. No caminho, conhece o professor de música, um grande entusiasta do seu talento que jura que, com o treinamento adequado, ela conseguirá a bolsa na faculdade. No entanto, a filha é parte essencial dos negócios da família, e, por isso, seus pais são relutantes em mandá-la para faculdade. No Ritmo do Coração se apoia em uma estrutura muito conhecida por nós, e nem consegue evitar a previsibilidade otimista da história, porém, seu grande diferencial reside em Ruby, a única pessoa na família que ouve e, assim, atua como a ponte entre seus pais e o mundo além da sua casa.

Ruby, interpretada pela excelente Emilia Jones, é CODA – child of a deaf adult (criança de adultos (pais) surdos), e, desde muito jovem, carrega grande responsabilidade no bem-estar da família. Acorda de madrugada todos os dias para acompanhar o pai e o irmão na pesca. Além de trabalhar no barco e ser responsável por ouvir aptos e avisos do rádios, ela também negocia a mercadoria adquirida no dia com os grandes atacadistas – e jura que estes estão passando a família para trás por serem surdos e ela uma adolescente. Só após essa dura rotina a garota vai para a escola.

Os pais não entendem a relação de Ruby com a música, e a mãe, inclusive, atravanca essa relação não permitindo que a jovem use fones de ouvido em casa, sempre desdenhando de seus discos e aparelhos de som e não acreditando no seu sonho ser cantora. Para eles, é difícil ver o futuro de Ruby na música, eles nunca vão saber se ela é talentosa e se sentem profundamento excluídos dessa área.

divulgação – Emilia Jones como Ruby Rossi, filha de pais surdos

O drama familiar é super relacionável e logo estamos apegados aos personagens e ao bem-estar que sentimos com a dinâmica carinhosa e irreverente da família. Sian Heder faz um ótimo trabalho em torná-los íntimos o suficiente para que participamos da realidade dessa família. Ruby é fluente na Linguagem de Sinais Americana, e, em uma cena com o professor de música, mostra que está é, na verdade, a sua língua mãe, e que o inglês aprendeu na escola e com as outras pessoas.

No Ritmo do Coração é baseado no filme francês “The Bélier Family”, no entanto, Sian Heder acrescenta, de fato, maior representatividade quando traz atores surdos para interpretarem seus papéis, diferente do original francês. Troy Kotsur (como Frank), Marlee Matlin (como Jackie) e Daniel Durant (como Leo, irmão de Ruby) estão incríveis em seus respectivos papéis. Eles enchem seus personagens de humanidade e personalidade, além de evidenciarem uma grande lacuna no cinema mundial: a ausência de pessoas com deficiência nos filmes, principalmente quando colocam outros atores para interpretarem histórias suas, sendo que, sim, existem vários PCDs atores que gostariam de mais oportunidades.

divulgação – Amy Forsyth, Daniel Durant, Marlee Matlin e Troy Kotsur

Porém, o talento e o carisma do elenco cobrem um problema que acompanha o roteiro um tanto quanto fraco do filme. Também adaptado por Sian Heder, a história torna difícil imaginarmos Frank, Jackie e Leo além dos momentos em tela – na presença de Ruby. Leo ressente a irmã mais nova pois, sua família coloca grande responsabilidade sobre ela, ao mesmo tempo que o trata como incapaz em certas situações: ele gostaria de negociar o valor do peixe, ele tem projetos e ambições próprias e deseja que a irmã siga a vida dela, que pode não ser interprete fulltime da família. Inclusive, Leo chega a verbalizar que a família ia muito bem antes de ela nascer, mas o filme torna impossível imaginarmos isso acontecendo.

Além da família, os demais personagens também ficam presos a uma única dimensão. Gertie (Amy Forsyth), melhor amiga de Ruby, é ~doidinha, sendo o completo oposto da protagonista abnegada, responsável e tímida. O ~paquera e responsável pela garota se inscrever no coral da escola, Miles (interpretado por Ferdia Walsh-Peelo do perfeito sem defeitos Sing Street), é um tanto quanto aleatório: nutre certo interesse por Ruby, mas a evita na escola, depois diz ter inveja da sua família, porém, como tantos outros personagens, é composto por falas avulsas de duas linhas. Nem o professor, Bernardo Villalobos (Eugenio Derbez) foge do estereótipo, protagonizando cenas saídas direto de uma sitcom juvenil: repleta de alívios cômicos e frases de efeito.

Os arquétipos e conveniências do roteiro vão além do primeiro plano e simplificam demais os conflitos do filme, desconectando-o de uma base mais realista. Não tem dinheiro para ir para faculdade? Eles dão bolsas de estudos. Ruby sofre bullying na escola? Supera, gata, a vida continua (esse assunto, inclusive, muito mal explorado pelo longa). Os compradores de peixe estão tirando vantagem dos pescadores? Os Rossi vão começar sua própria cooperativa! Os pescadores não incluem os Rossi na discussão? Espera até eles salvarem a classe. Final feliz é implícito desde o começo do filme, porém essa necessidade de calcular cada aspecto da jornada tira sua espontaneidade, e, em certo ponto, a sua relação com a vida real.

divulgação – Emilia Jones, Troy Kotsur e Marlee Matlin em No Ritmo do Coração

Veredito!

No Ritmo do Coração é um filme família de aquecer o coração, com cenas emocionantes e uma história acolhedora cheia de inspiração. O laço que une os Rossi é forte, uma família cuja a química transborda a tela com seu amor incondicional e desafios naturais, sendo ao mesmo tempos únicos e universais. Os sentimentos de Ruby são super relacionáveis e a jovem surpreende com sua maturidade (adquirida na marra) e resiliência – tal como Ruby, existem jovens que são essenciais para o funcionamento da sua família, e demoramos a perceber o quanto essa rotina pode ser exaustiva física e psicologicamente, “roubando” alguns anos e aspectos importantes de uma plena juventude.

Sian Heder se mostra uma diretora sensível, construindo momentos marcantes e repletos de carinho e transformação na jornada de Ruby. No entanto, o roteiro – também de sua autoria, conta uma jornada excessivamente conveniente cujo problema não está no otimismo e na previsibilidade (todos merecem viver seu clichê gostosinho), mas na superficialidade de seus temas e personagens, estes construindo apenas com virtudes e discursos vazios. A sensação de cartas super calculadas sendo viradas conforme a história progride atravanca a imersão da audiência e o senso de realidade da obra.

Avaliação: 3 de 5.

Indicações ao Oscar 2022
* Melhor Filme
* Melhor Ator Coadjuvante – Troy Kotsur
* Melhor Roteiro Adaptado

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