É a primeira vez dirigindo um musical, mas a sensação ao assistir ao novo Amor, Sublime Amor de Steven Spielberg é de que o cineasta faz isso a vida inteira. O remake do Romeo e Julieta ~nova yorkino~ não apenas homenageia o clássico, como traz atualizações essenciais para a história. Apesar do filme impecável e deslumbrante, uma pergunta assombra toda a experiência: “por quê?”.
Demolição e escombros, a abertura de Amor, Sublime Amor, anuncia a tragédia que está por vir com um cenário magistralmente destruído e uma fotografia com alto contraste, mas carente das cores vivas típicas de musical. A primeira cena já ilustra que Spielberg sabe mesclar teatro e cinema como poucos, utilizando os recursos audiovisuais para entregar uma performance típica de Broadway, com poucos cortes e muita dança, que cresce com o cenário.
Assim somos apresentados aos Jets, gangue de brancos filhos de imigrantes europeus que não prosperaram na terra prometida. Com galões de tintas roubadas, atitude opressiva, looks lindos com uma vibe Levi’s desconstruída, eles caminham com um propósito: destruir o mural de orgulho porto-riquenho pintando na comunidade que, para seu desgosto, dividem com esses outros imigrantes.
Aqui temos o primeiro acerto (básico) de Spielberg: a escalação latina para viver os Sharks, comunidade porto-riquena que imigra para Nova York em busca de melhores oportunidades (sim, os personagens do núcleo Porto Rico sempre foram vividos por atores brancos, surreal, não é mesmo?). Com cores mais vibrantes e saturadas, os Sharks deixam sua marca na briga com os Jets – o vermelho do sangue em um dos membros da outra gangue – mais um presságio de que a violência está apenas chegando.
Uma das mudanças mais significativas no remake de Amor, Sublime Amor é a adição de contexto: o roteirista Tony Kushner ilustra de forma mais complexa e precisa a situação social dos dois grupos e a contradição em que vivem. Para apartar a briga de gangues, a polícia aparece e a “passada de pano” é bem maior para os Jets, brancos que, apesar de estarem numa situação de marginalização, ainda são ditos como pertencentes àquele lugar – enquanto os porto-riquenos, vítimas de racismo, são mais hostilizados pela polícia e tido como ~outsiders, mesmo sendo cidadãos americanos. Uma ferida antiga que os Estados Unidos fazem questão de deixar sangrar por gerações a fio.
Movido por um sentimento de reparação histórica, Spielberg faz questão de enfatizar, aqui, sua mensagem: os porto-riquenhos são americanos (estadunidenses, na verdade rs), não “os outros” (~outsiders). Além do elenco latino, o diretor explora o espanhol fluente dos personagens e ousa em não legendar suas falas – o espanhol também constitui os Estados Unidos, e, ao se recusar legendar as falas, diz em alto e bom tom: essa também é a nossa língua, esse também é o nosso povo. Uma escolha política louvável e poderosa que ressoa por toda a trama: os personagens, sendo bilíngues e utilizando sua vantagem, deixam desconfortável aqueles que não tiveram a mesma preocupação em aprender o idioma alheio – como o policial exigindo que eles falem em inglês.

E, neste contexto, temos a primeira cena de arrepiar – os Sharks cantando forte uma canção de orgulho porto-riquenho, mesmo depois dos Jets estragarem seu mural num crime de ódio, mesmo depois da hostilidade policial, eles seguem orgulhosos de quem são e de suas raízes, eles não irão recuar e aceitar serem desmerecidos (e não deveriam mesmo!).
Essa riqueza de contexto nos acompanha ao longo da trama e enriquece o filme, traz um aspecto atual e um senso de propósito a Amor, Sublime Amor que não existia nos seus antecessores. West Side Story, título original da obra em inglês (pois é), é a história deste bairro de Nova York e, toda história de amor, é marcada por um contexto socioeconômico intrínseco que, neste caso e dado o momento e pautas atuais, não poderia ser simplesmente negligenciado – e nem favorecido para o lado branco da história como usualmente acontece.
No entanto, tamanho comprometimento com o contexto exigiu um sacrifício um tanto quanto custoso para a obra: o romance entre Tony e Maria, plot principal desta tragédia de amor. Tony, interpretado por Ansel Elgort (cuja imagem de bom moço foi manchada devido à acusação de estupro que não foi exatamente esclarecida, não é?), é uma figura de liderança e respeito dentro dos Jets, porém, após voltar da detenção de 1 ano no reformatório, resolve se afastar do grupo e das confusões e dar um rumo para sua vida, começando num trabalho e almejando uma vida melhor.
Ansel Elgort é uma grata surpresa no aspecto musical, com uma voz forte e charmosa unida a boas coreografias e a cara de bom moço, ele encanta a audiência! Afinal, quem não gostaria de uma serenata em seu nome ao pé da sua janela? No entanto, a instabilidade de sua performance se revela nos momentos fora da música, quando a atuação dura e travada impede de nos sentirmos conectados, e o ator falha em demonstrar a vulnerabilidade de Tony, o deixando um tanto quanto entediante – ele não passa a imagem de uma pessoa impulsiva, algo intrínseco ao personagem.

Quem segura a aura de amor jovem, adolescentes vivendo uma paixão instantânea e proibida é Maria, vivida pela talentosíssima Rachel Zegler! A personagem, irmã do líder dos Sharks, tem a voz melodiosa, dramática e lírica que a destaca dentro da produção e intensifica todo o drama e a poesia que a história carecia. Ela transmite inconsequência, inocência e paixão em medidas exatas para funcionar em harmonia com o longa. É a representação perfeita da jovem que saiu direto do álbum Fearless da Taylor Swift e isso é o maior elogio que poderia ser feito para esta performance.
O elenco conta com outros rostos pouco familiares, mas que ressaltam o olhar mágico e poderoso de Steven Spielberg e associados em encontrar atores fora do mainstream com potencial que precisa ser explorado. A maior dessas joias é Ariana DeBose, que vive Anita, praticamente cunhada de Maria, a personagem é descontraída, encantadora e carrega o astral do primeiro ato – quando em cena, ela brilha e o figurino ressalta isso por meio de roupas com toque de cor marcante. Sua voz e sua dança são hipnóticas e, quando DeBose aparece, os holofotes estão todos nela, mesmo de forma involuntária. A atriz guia nossa emoção e, quando no segundo ato a tragédia anunciada é instaurada, é ela quem consegue transmitir o ódio e a dor que todos sentimos. Anita é a emoção do filme, e vê-la se quebrando é a parte que mais dói.
Na versão clássica de 1961, a interpretação de Anita rendeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante para Rita Moreno e foi responsável pelo desponte de sua carreira. Na nova versão de Amor, Sublime Amor, contamos com a presença da estrela como Valentina, viúva que comanda a farmácia onde Tony mora e trabalha. A personagem é uma adaptação muito bem-vinda e uma boa construção de homenagem e ligação com a obra original – antes, tal papel era de uma figura masculina. Rita Moreno está deslumbrante e ganha seu próprio número musical com “Somewhere”, uma interpretação emotiva e marcante, além de servir de elo entre os Jets e os Sharks, pedindo para a rivalidade de gerações acabar e eles viverem, enfim, em harmonia (já que estão todos do mesmo lado: marginalizados, pobres e expulsos de sua comunidade pelo capitalismo da gentrificação – mas o racismo né).

Dito tudo isso, fica claro que quem mais perdeu espaço no remake de West Side Story foi, justamente, o amor – a falta de química entre Tony e Maria dificulta para nós nos apaixonarmos por eles e viver esse amor proibido, apenas quando ele se transforma numa tragédia, é que nosso coração sente, de fato, o impacto. Os protagonistas lutam para manter esse status, quando coadjuvantes tão bem trabalhados, complexos e interessantes ameaçam a todo momento roubar o foco da história.
Como Spielberg e Kushner brilhantemente atualizaram a história e a trouxeram para os dias atuais, o mesmo cuidado faltou diante do romance instantâneo vivido por Tony e Maria – o quanto a paixão avassaladora dialoga nos dias atuais? Os personagens mal conversam entre si, presos em serenatas e números musicais lindos e comoventes, mas que são um pouco inverossímeis para a audiência mais jovem. A iniciativa de colocar os dois personagens como adolescente foi uma tentativa de mostrar que esse amor é impulsivo e inconsequente, mas a trama toma rumos muito extremos que dificulta se conectar emocionalmente e crer no que está acontecendo (me senti com o coração gelado e velha procurando verosimilhança num romance de musical).
Apesar da sensibilidade incrível que Spielberg e Kushner adaptaram aspectos relativos à classe, identidade cultural, e raça, o enredo principal continua datado.

Em último recorte, ao ilustrar uma história contaminada de masculinidade tóxica, Spielberg explora a não-binaridade e a dificuldade destas pessoas se encaixarem em grupos. Anybodys, personagem de Iris Menas, atua a margem dos Jets, sendo constantemente rotulada como “mulher”, algo que a personagem nega em todos os momentos. Ela transita entre os grupos como se fosse invisível, porém, utiliza essa vantagem como moeda de troca para integrar os Jets, algo que nunca parece funcionar. Uma nuance pequena dentro da história, mas interessante de ser trabalhada e ter seu espacinho na pauta.
Amor, Sublime Amor enriquece os contextos da obra e nos proporcionar uma adaptação perfeita entre cinema e teatro – Spielberg é um mago e atinge o que pouquíssimos conseguiram, proporcionar a experiência da Broadway por meio da tela. As coreografias são impecáveis e aproveitam o cenário de modo fluido com a câmera, que faz poucos cortes e oferece sequências perfeitas dos números musicais: poucos closes, muitas dança e a sensação de ter uma banda tocando ao vivo as canções – o aspecto técnico perfeito do filme é a maior homenagem a este clássico da Broadway.
A cena do batalha de danças no baile responsável por unir o casal Tony e Maria é de tirar o fôlego, existe tanta tensão, energia e paixão acontecendo que o coração transborda com a beleza e a emoção desta cena. A escolha dos cenários é de um detalhe absurdo, o design de produção transforma a destruição em poesia.
West Side Story é um dos maiores filmes de Spielberg e, com sua assinatura do começo ao fim, o diretor deixa claro que se preparou a vida inteira para este momento. No entanto, o enredo principal preso a um modelo romântico que não dialoga com a juventude levanta a questão: por que estamos vendo esse remake? Um trabalho deslumbrante de poucos retoques, mas que carece de um propósito maior. Spielberg chegou ao patamar de fazer o que quer com orçamento que deseja, e demonstra em cada detalhe o trabalho genial que executa, porém, além de uma homenagem atualizada nostálgica da velha hollywood, pouco sentido sobra para justificar o remake.
Agora, resta saber se Spielberg e equipe irão levar 10 Oscars para casa, incluindo de melhor filme, como a adaptação de 1961 (muito difícil, mas alguns prêmios vem, sim haha).
