Em faroeste que desafia o próprio gênero, Jane Campion cria um suspense psicológico opressivo que, apesar de se passar na década de 1920, reverbera ainda nos dias atuais. Com um elenco estrelado, a diretora inspira uma das melhores atuações da carreira de Benedict Cumberbatch e oferece metáforas visuais que nos fatiam como um bisturi. Ataque dos Cães é um filme que drena o nosso emocional e mexe numa cicatriz que a maioria de nós tem em algum lugar do coração.
Esqueça Smaug, Khan ou até mesmo Sherlock Holmes, nunca havíamos testemunhado o verdadeiro potencial cobra fria e envenenada que Benedict Cumberbatch pode nos oferecer. É como Phil Burbank que o ator demonstra seu brilhantismo em encenar alguém odioso e extremamente complexo. Junto ao irmão George (Jesse Plemons), os dois são novos ricos da região de Montana, fruto do trabalho como vaqueiro e boa administração das terras. No entanto, George e Phil tem uma relação esquisita, uma simbiose disfuncional para ambos: Phil é um valentão que pratica bullying em toda a oportunidade que aparece, e George é gentil, educado e um tanto compassivo com a situação.
A dinâmica dos irmãos muda quando, durante a viagem para o rancho da família, pernoitam na cidade próxima, onde se hospedam na pensão coordenada por Rose (Kirsten Dunst). Enquanto faz a comida, ela conta com a ajuda do filho adolescente, Peter (Kodi Smit-McPhee) – um jovem magrinho, tímido e delicado – para servir os clientes. Quando Paul descobre que a decoração do local, flores feitas de papel, foram obra de Peter, o garçom educado, o valentão encontra seu próximo alvo, sendo homofóbico com o garoto e o fazendo fugir do local, deixando sua mãe sozinha.
O que (o babaca) de Phil não contava era que, seu irmão George iria passar tempo o suficiente com Rose para se apaixonar e, rapidamente, transformá-la em sua esposa. Phil é misógino, e deixa isso evidente em todas as interações com a nova cunhada, que, sem o filho por perto, uma vez que o jovem está fora estudando, mergulha numa solidão opressiva. Essa é uma história difícil e emocionalmente pesada cujo conteúdo extrapola os diálogos e sua densidade se encontra nas entrelinhas e artimanhas visuais, até sermos brutalmente atingidas pelas surpresas óbvias da diretora.
quer entender o título? fique até o final!
Adaptada do romance autoficcional de Thomas Savage de 1967, Ataque dos Cães é esteticamente um filme de faroeste, no entanto, seu conteúdo se assemelha a um terror psicológico, a história não adota um ponto de vista e tem um olhar quase antropológico da situação. Ataque dos Cães critica de forma contundente a masculinidade tóxica e como ela corroi todas as relações na qual é performada.
Phil incomoda desde o primeiro minuto em tela com sua gordofobia com o irmão. Para ele, masculinidade é sobre força, dominação e controle, o personagem faz questão de se mostrar no comando, de colocar todos “nos seus lugares” e de atacar qualquer sinal de fraqueza que identificar. Ele é uma pessoa verbalmente agressiva e, psicologicamente abusiva que drena todos ao seu redor – gatilho para muita gente, afinal, quem nunca cruzou com o ~bullier desse no caminho?

Jane Campion consegue extrair todas essas emoções dos atores sem a necessidade de muitas falas, elas simplesmente transpiram de cada um. Benedict Cumberbatch tem um olhar predador, intransponível, que faz ameaças sem verbalizá-las, ele se deleita com a dor do outro de um jeito impenetrável, até começarmos a entender seus motivos. Phil é sujo, sabe disso e aceita vestir essa carcaça que deixa de ser literal e vira metafórica, o seu fedor mantém todos afastados o suficiente para ver apenas aquilo que ele controla, aquilo que ele permite. Cumberbach intimida a audiência, e nos deixar inquietos com a sua presença, desconfortáveis, com medo de sermos a piada da vez.
Emocionalmente distante também temos George, que funciona como antítese. Ao contrário do irmão, a figura de George nos acalenta e tranquiliza. Ele é alguém atencioso e gentil, que passa ternura e uma força diferente, não bruta, mas educada, polida e sensata. George tem a segurança que carece em Phil e não assume o rótulo da masculinidade da época, sabe quem é e age com confiança diante disto. Em momento algum ele deixa seu irmão o intimidar ou definir – apesar de agir com profunda compaixão, de quem sabe e compreende mais do que demonstra a primeira vista.
A simbiose dos dois, entretanto, troca de perspectiva rapidamente! Jane Campion tem uma habilidade indescritível de deixar pistas significativas de forma sutil, instigando a audiência a refletir sobre a verdadeira a dinâmica de poder da relação, ilustrada pela excelente fotografia. Metáforas visuais, sutileza da direção de arte, a linguagem corporal dos atores e a trilha sonora são perfeitamente orquestrados de modo a deixar pistas claras, nos induz a pensar além dos diálogos. Jane Campion ilumina as verdades ocultas e traz a vista o que os personagens acreditaram estarem escondendo o tempo todo.

Ao evidenciar o quanto a performance da masculinidade tóxica corrói toda a estrutura familiar e social, Jane Campion cria um Anti-Faroeste e utiliza o gênero para denunciar o mal que tais “exemplos” de comportamento propagaram por décadas. Cada informação contida no filme é algo a se pensar, é um tema profundo que se conecta com a mensagem central da trama. Vencedora do Oscar pelo roteiro de “O Piano”, Jane Campion consegue criar o histórico dos personagens sem a necessidade de flashbacks, pois suas reações cotidianas e os pedaços de fatos expostos já fazem o trabalho.
A narrativa visual escancara o que as palavras nunca ousam dizer, a fotografa de Ataque dos Cães é um deleite semiótico bem objetivo em sua mensagem e esclarece as dúvidas e questões que os personagens jamais serão capazes de verbalizar. Jane Campion utiliza símbolos clássicos do faroeste, como a corda e a montaria, e questiona suas origens e ao que ele poderiam nos remeter. Um trabalho ousado, poético que ressignifica tais simbologias e desconstrói o mito frágil do herói de faroeste.


O último elogio guardei para a atuação perfeita de Kirsten Dunst (~fofoquina, contra-cena com o marido da vida real, Jesse Plemons). Sem muito material para trabalhar, Rose é basicamente a única personagem feminina significativa na trama e seu arco vai na contra-mão do que se espera de um filme, da esperança a derrocada. Kristen Dunst tem uma performance agoniante de uma mulher que era livre e, agora, vive com medo, tem receio pelo filho, e se perde dentro da própria dor. Faltou um pouco mais de conteúdo, sim, no entanto, a atriz tem uma das suas maiores entregas no papel.
Ataque dos Cães não entrega o que sugere nos primeiros minutos – um aparente faroeste entediante se desenrola num terror psicológico chamado masculinidade tóxica cujo opressor está cego demais para enxergar o dano que causou, principalmente a si mesmo, até ser tarde demais. Uma tragédia anunciada, Jane Campion dirige o filme com sutileza e exige da audiência mais do que empatia, mas atenção, pois os sinais de um abusador estão por toda parte, assim como as fraquezas, que julgam estarem bem escondidas. Ataque dos Cães não acaba com os subir dos créditos, mas além da dor que nos invoca, nos faz admirar o trabalho impecável do elenco, da produção e da diretora.

PS: Vamos falar desse título? O original é: The Power of the Dog que, na história, é uma passagem bíblica repleta de simbolismo que explode nossa mente, nos faz pensar no filme inteiro – brilhante, além de ser o título original do livro no qual o longa é baseado. Agora, ATAQUE DOS CÃES é horrível, não tem NADA a ver com NADA da história, descaracterizou a obra, e, sinceramente, o que rolou aqui, sabe? Registrada minha indignação!
