A ficção científica é um gênero hostil para as mulheres, sempre reduzidas a mínima participação possível – quando não são vítimas de violências exageradas para fim de desenvolvimento de personagem masculino. De todos lugares comuns e estereótipos que Frank Herbert se propôs a se afastar em Duna, a posição da mulher foi a que menos se dedicou e, nós, estamos restritas, como é de ser esperar, a migalhas de representação.
Contém spoilers de Duna!

Ao longo das quase 700 páginas da épica história de Duna, podemos dizer que apenas uma mulher, de fato, influencia o jogo político: Lady Jessica, mãe de Paul. Notória Bene Gesserit, assim como outros personagens, ela representa uma organização influente no universo construído pelo autor. As Bene Gesserit são vistas, pelos mais ignorantes, como bruxas – uma “ofensa” padrão para mulheres independentes, fortes e poderosas. Herbert faz bom uso da palavra e prova que entende o que se esconde atrás da suposta ofensa. Muitos homens poderosos temem a influencia das Bene Gesserit, e as desqualificam justamente por isso.
Elas são uma organização exclusiva de mulheres treinadas nas artes dos sortilégios – o que significa que sabem lutar muito bem. Além disso, adquirem em seu treinamento único e rigoroso, capacidade quase telepática e manipuladora, ordenam pessoas apenas com um comando de voz e conseguem controlar suas próprias emoções com a força da mente. São criadas e espalhadas pelo império para fazerem bons casamentos, atuarem de forma sutil e ardilosa no jogo político por meio de seus maridos, e produzirem herdeiros específicos com missões já pré estabelecidas.
Apesar de poderosa e influente, essa organização é pautada em ideias estereotipadas do papel da mulher e da natureza de sua atuação na sociedade. Afinal, conspirações e manipulações escusas por meio de casamentos é enxergar o poder feminino de forma ameaçadora e pouco honrosa, para dizer o mínimo. Nesse sentido, a ideia de bruxa perde um pouco o tom de crítica e assume um manto inevitável na maneira pouco imaginativa de como as mulheres podem exercer sua influencia ou criar seus poderes, seja de forma política ou fantasiosa.

A trajetória de Lady Jessica e o arco da personagem são muito bem construídos e ela é uma figura importante para o desenrolar da história. Porém, seu desenvolvimento, mesmo que bem feito, é regido por clichês convenientes de gênero: seus impulsos e ações são sempre com motivação no amor, seja pelo Duque ou pelo seu filho, Paul. Na realidade, pouco exploramos a essência de Jessica nos assuntos que não tangem os homens a quem ama. Ela é mártir, ela precisa ser salva, ela erra por excesso de zelo, essas complexidades são uma face da moeda, enquanto a outra é um lugar comum de personagens femininas reduzidas a seus papéis sociais, na forma como homens enxergam a mulher – Lady Jessica, no fundo, é um projeção bem trabalhada.
Enquanto somos absorvidos por uma enorme quantidade de homens com papéis plurais dentro de Duna, nossa única companhia feminina é Jessica por um bom tempo. A história deixa evidente que o espaço da mulher naquele universo é de esposa, potencial esposa ou serviçal (salvo exceção da Reverenda Madre). A princesa Irulan, quem conhecemos apenas ao final do livro, reduz a sua participação neste dando voz a Muad’Dib, escrevendo diversos livros e enxertos sobre o herói de Arrakis, ocasionalmente sobre o seu pai, mas nunca sobre ela.
Isso é algo que poderia ser uma característica a ser contraposta pela cultura Fremen, mas esta apenas atesta o pouco espaço destinado as mulheres nessa história. Para eles, a mulher é tratada quase como uma mercadoria, de certo modo, um espólio de guerra. Apesar da base no Islã, esse é um povo e uma religião fictícia, e o autor poderia ter adaptado o papel da mulher nesse sistema, como fez com tantos outros. Só que continuamos a representação servil, de cuidados a tribo, de cozinhar e administrar os acampamentos, por exemplo.

Mesmo que em seu universo todas as mulheres importantes possuam conhecimento de batalha, lutem e manejem armas, essa representação rasa de poder não é muito significativa. Não acompanhamos, de fato, nenhuma garota em treinamento, em batalha, ou lidando com qualquer dualidade relacionada a isso, são acontecimentos que ocorrem ao fundo de algo mais importante protagonizado por algum homem.
No final, todas as garotas e mulheres dessa história orbitam Paul Atreides: o admiram, querem seu amor e fazem de tudo para agradá-lo. Ao pesquisar um pouco mais sobre as sequências da Saga pude perceber que se abre mais espaço para o protagonismo feminino, porém, além de não saber ainda como elas são desenvolvidas, nesse primeiro volume a representação feminina deixa muito a desejar, apoiada em estereótipos disfarçados no competente desenvolvimento de algumas poucas personagens.
Uma resposta para “Duna e a representação das personagens femininas”
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