Duna: Entenda o contexto histórico da obra!

Apesar das críticas e do contexto quase atemporal, Duna não é uma obra deslocada de seu tempo e o triste, na verdade, é perceber que, após 56 anos, muitas questões continuam atuais e com consequências já bastante devastadoras. Num primeiro momento pode parecer chato e anticlimático, mas Duna é um livro que tem sua raiz na ecologia.

Contém Spoilers!

Arrakis, cenário principal da obra de Frank Herbert de 1965, é um grande deserto e a maior riqueza que alguém pode ter é a água: a economia do lugar e a própria cultura giram entorno desse bem, afinal, não há vida sem água. Liet Kynes é um planetólogo que segue a profissão e o plano do pai para transformar Duna em um Oasis – no apêndice do livro existe toda a explicação biológica desse plano e, ok, eu adoro biologia, mas é bem interessante. Essa ideia e os detalhes minuciosos do autor não surgiram do nada, mas de sua experiência de quase 6 anos estudando as dunas de Oregon.

Nos Estados Unidos, Herbert, jornalista, ficou responsável por escrever uma matéria sobre os estudos que faziam na época para conter as dunas de Oregon, que, devido ao vento, se deslocam por uma área grande e impedem a vida e que construções ocorram no local. A matéria nunca foi publicada, mas a empolgação e os anos de pesquisa de Herbert não foram em vão: criaram um planeta referência da ficção científica.

Os Fremen, habitantes de Arrakis, não tem apenas a sua cultura inspirada pelo Islã, mas também economia e cenário típicos dos povos do Oriente Médio. O mélange, substância essencial para as viagens espaciais, é uma explícita analogia ao petróleo. Em 1960, 4 dos 5 maiores produtores de petróleo do mundo se encontravam no Oriente Médio e protestavam contra o mercado (dominado pelos EUA) em relação ao baixo preço do barril, exigindo que o lucro dessa commoditie ajudasse a desenvolver os países explorados (o mínimo rs).

O sistema econômico de Duna, uma das forças motrizes da história, é uma crítica contundente ao modelo de exploração do império (EUA) sob países pobres (OM e África): como é complicado depender de uma commoditie não renovável para o desenvolvimento econômico e tecnológico, e como este tem impacto devastador na natureza. Em Duna, quem “fabrica” o mélange são os vermes gigantes, e, nesse processo, eles produzem mais areia, que mantém o clima hostil à vida e dificulta o desenvolvimento dos Fremen.

No geral, Duna critica o modelo de exploração econômica da época mantida pelos EUA e pela Europa Ocidental – no qual se mantinham às custas da colonização e exploração dos países mais vulneráveis do Oriente Médio e África. Tendo isso em mente, tais países colonizados começaram a reivindicar sua independência na década de 1950/60. Hoje, conseguimos observar os efeitos devastadores prenunciados pelas análises socioeconômicas da época.

Em tempos, os homens entregavam o pensamento às máquinas, na esperança de que isso os libertasse. Mas só permitiu que outros homens com máquinas os escravizassem.

~ Frank Herbert

Outra metade dos Fremen tem raiz no budismo, principal religião do Vietnã. Duna foi publicado enquanto os EUA guerreavam com o país, e perderam devido a falta de conhecimento geográfico da região – algo replicado nesta ficção de forma quase presciente. Dessa forma, os Fremen e a obra como um todo criticam o imperialismo americano e a forma limitada de enxergar as demais culturas, evidenciando a força no diferente, a capacidade de adaptação humana em cenários hostis e o mito da superioridade intelectual que alicerça o pensamento ocidental colonizador, subjugando povos e locais destoantes.

À época, essas críticas eram tecidas pelo movimento hippie, do qual Herbert era um grande entusiasta. Então, além de ecológica, Duna é uma história um pouco hippie também, e não apenas as críticas intelectuais do movimento foram utilizadas. Os famosos chás de cogumelo psicodélicos são a base para os efeitos do mélange no organismo: consumidos em pequenas doses, eles aumentam a percepção natural da pessoa e oferecem vislumbres do futuro, porém, podem causar dependência e deixa seus usuários com os olhos azuis. Além disso, essa substância também é utilizada num ritual importante das Bene Gesserit – todos esses conceitos inspirados pela própria experiência de Herbert com “cogumelos mágicos”.

Outro cenário geopolítico importante da época e que tem seus reflexos em Duna é a Guerra Fria. A influência da corrida espacial na ficção científica da época é incontestável, porém, Herbert trouxe uma abordagem mais pessimista daquelas observadas em outras histórias. Diferente de Doctor Who ou Star Trek, universos criados também na década de 1960, Duna tem uma visão distópica que não enxerga a paz e a harmonia entre planetas e povos, mas sim uma expansão da mania imperialista americana. Duna extrapola o que acontece na Terra para o universo: o subjugamento de povos, culturas e a colonização, enquanto as obras citadas tem um olhar mais esperançoso, de acolhimento e celebração das diferenças – iludidas rs.

Ainda assim, Herbert não consegue fugir do clichê e da necessidade de colocar os russos como vilões violentos, trapaceiros e ardilosos do seu romance. Os Harkonnen são em estética e pensamento uma clara representação dos russos, ou do leste europeu no geral, concentrados todos na União Soviética. Sendo assim, é impossível não associar os Atreides como europeus, ainda colonizadores, mas com certo senso de honra, de respeito e humanidade. Afinal, mesmo com todas as críticas, Herbert ainda é americano e tem enraizado em si a história eurocêntrica que todos aprendemos. Ambos querem colonizar os Fremen, e isso é quase inevitável dado ao aspecto econômico e de poder, porém, um colonizador seria “menos pior” do que o outro.

Duna é uma obra que representa a Era de Aquário. Contextualizada na década de 1960, esse foi um período marcado pela transformação em âmbito planetário – as preocupações ambientais começaram a aparecer em pautas importantes, os países em desenvolvimento estavam em processo de descolonização e combate ao imperialismo americano, que, ao mesmo tempo, estava cada vez mais espalhando a sua hegemonia global. O mundo estava polarizado, e o estado de consciência das pessoas em expansão, com a globalização iniciando seu processo sem volta.

A importância de Duna está na sua ilustração ficcional da realidade, e em conseguir transmitir toda a complexidade socioeconômica numa história que aborda não apenas a política e a ecologia, mas uma história messiânica, religiosa e culturalmente diversa.

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2 respostas para “Duna: Entenda o contexto histórico da obra!”

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