Há 26 anos, ocorria o auge da guerra entre a antiga Iugoslávia e a Bósnia e Herzegovina, um conflito sangrento que serve de cenário para “Quo Vadis, Aida”, indicado a melhor filme internacional no Oscar. Sob o ponto de vista feminino, Jasmila Žbanic transcende o gênero com uma abordagem diferenciada e traz para discussão um dos maiores crimes contra a humanidade, e as consequências da inação de quem deveria ajudar.
O filme nos fornece um olhar diante do horrível massacre de Srebrenica, genocídio cometido pelas tropas Sérvias, que executaram 8,372 homens e meninos bósnios, em julho de 1995. Quem expõe os momentos de terror vividos é Aida, uma professora de escola que vai trabalhar como interprete das Nações Unidas, atuando na cidade tida como “zona de segurança”, sob a supervisão dos holandeses.
Com uma conversa difícil, o filme abre numa negociação desesperançosa entre o prefeito de Srebrenica e os oficiais da ONU. Aida é apenas uma tradutora que permanece neutra na discussão, porém, o acumulo de informações confidenciais e a experiência com a guerra oferecem a personagem um prelúdio do que está por vir. Apesar do “ultimato” da ONU, as tropas sérvias avançam cidade a dentro e, nos primeiros instantes, já temos o gosto de genocídio e promessas não cumpridas que nos acompanharão. Vemos um pai e dois filhos deixarem sua casa com um tom temporário e banal, para chegarem ao campo de refugiados e se depararem com cerca de 25 mil pessoas, nas quais apenas 1/5 conseguiu, de fato, passar pelos portões – a família de Aida não estando entre eles.
Filmes de guerra costumam ser feitos por homens e focam em atitudes heroicas, altruísta e no sufoco que os militares passaram em nome da defesa de sua pátria, tudo regado a boas doses de violência exacerbada. “Quo Vadis, Aida” se destaca por trazer uma abordagem diferente, deixando a romantização militar de lado e focando na tragédia humanitária iminente sob a perspectiva civil, de quem é expulso da sua casa e executado no seu quintal.
A crescente dramática construída por Jasmila Žbanic é sensível e potente. Acompanhamos com o coração na mão as tentativas de Aida em salvar seus filhos e marido, ao mesmo tempo que, junto com a personagem, vamos tomando consciência do que está acontecendo. A construção de Aida é impecável do começo ao fim: o desespero prolifera pelo coração de mãe e esposa e faz sua mente trabalhar o tempo inteiro, dividida entre o dever de interprete e a elaboração de estratégias de fuga. Seu protagonismo brilha quando está numa sala repleta de homens fardados, e, especialmente, quando se recusa a desistir, quando a maioria ai já o fez. Uma figura feminina resiliente e corajosa, num ambiente dominado por bananas covardes.
A parceria de Jasmila Žbanic, Christine Maier (diretora de fotografia) e Jasna Duricic (Aida protagonista) é uma triunfo feminino, mulheres brilhantes com uma perspectiva sensível, feministas e corajosa – e precisamos exaltar essa sintonia que entregou uma obra impecável.

Os momentos de alívio são quase inexistentes, e Žbanic coloca vislumbre do que está acontecendo na nossa visão periférica, não nos deixando escapar a brutal realidade que avança e nem nos faz ceder ao completo desespero, já que, para salvar sua família, Aida também não pode se entregar a ele. Ao não mostrar diretamente o que o destino reserva, a narrativa nos permite ser otimistas e buscar formas de salvar aquela família. Jasmila Žbanic, diretora bósnia, nos oferece a misericórdia que foi negada ao seu povo, escolhendo deixar tramas subentendidas.
A pergunta que fica conosco é: como a ONU permitiu que aquilo acontecesse? É incalculável a crueldade da instituição em encher o coração dos refugiados de falsas promessas, de criar uma missão de paz que falha constantemente, liderada por oficiais despreparados e apáticos. A ONU deixou que um genocídio acontecesse embaixo do nariz deles, com as pessoas que prometeu abrigar, refugiados de uma cidade que jurou proteger. “Quo Vadis, Aida?” não condena apenas o inescrupuloso exército xenofóbico e supremacista da Sérvia, mas também as (faltas) de atitudes das Nações Unidas, que estavam lá apenas assistindo ao horror.

“Quo Vadis, Aida?” é um filme feminista de guerra. Jasmila Žbanic fala sobre traumas que vão além do conflito armado sangrento, mas daqueles que perduram e assombram os civis: a forçada expulsão de casa, a brutal separação de familiares, o seu ex-aluno estar apontando uma arma para você. Srebrenica é uma cidade de fronteira, e essa guerra foi travada praticamente entre vizinhos. Além de tiros, explosões e corpos, a guerra é feita de indignidades cotidianas que sobrevivem na memória. Aida representa uma legião de bósnias, mulheres que suportam o peso das perdas e dos traumas, e precisaram juntar os cacos.
Filmes de guerra pouco abordam a perspectiva de quem fica, especialmente das mulheres – que, normalmente, são utilizadas para humanizar os militares. Essa guerra ocorreu há apenas 25 anos, é uma ferida aberta para milhares de pessoas que perderam pais, irmãos e filhos num conflito que perseguiu e massacrou homens bósnios. Um capitulo recente da história europeia que pouco temos contato, mas que se faz importante num cenário cada vez mais violento e intolerante, com ameaças frequentes do autoritarismo.
