O avançar civilatório soterra a sua própria história, só que deixar o conhecido para trás e embarcar numa nova era é um grande desafio para as almas mais apegadas. Edifício Gagarine nos convida a observar a vida de um habitante em especial, e como a sua história se mistura com a do próprio prédio. Um conto poético e social, o filme francês nos leva para o espaço que há dentro de nós.
Nomeado em homenagem ao primeiro homem a ir para o espaço, o astronauta russo Yuri Gagarine, o edifício popular parisiense está prestes a ser demolido e, enquanto a maioria dos moradores está conformado com a situação, Yuri tem dificuldade em aceitar o fim da única casa que conhece. O menino (Yuri) e o edifício (Gagarine) se complementam e formam o astronauta pleno – o protagonista sonha em conhecer o universo, e faz do prédio o seu foguete.
Gagarine realmente existe, o prédio foi inaugurado em 1963 e é uma obra emblemática do Partido Comunista da França, tendo sediado várias reuniões na época – e o astronauta homenageado, inclusive, participou da inauguração do edifício. Em 2019, a moradia popular estava em péssimas condições e com vários apartamentos vazios e, de fato, foi determinada a sua demolição pelo governo da época – só que ela nunca chegou a acontecer. Na nossa ficção, devemos isso a Yuri.
Com um conto cheio de metáforas visuais e de roteiro, a dupla Fanny Liatard e Jérémy Trouilh traça um paralelo entre a história do edifício e de Yuri. O jovem sonha em ser astronauta, tal qual seu xará, e utiliza esse desejo como um escapismo da realidade: abandonado pela mãe, mora sozinho no edifício – único cenário que conhece, e, portanto, que pode nos apresentar. Ambos são projetos cheios de potencial, Yuri é inteligente e super inventivo, representado como um prodígio capaz de construir e dar vida a qualquer coisa, e, tanto para o edifício quanto para o garoto, o abandono os deterioram por dentro.

As referências a Perdido em Marte são várias, com uma estufa ~homemade~ e a construção de sua nave espacial própria, no caso de Yuri, com os objetos que foi encontrando pelo caminho. Liatard e Trouilh flertam com o surrealismo, e a câmera traduz o roteiro metafórico como só quem escreveu aquela história poderia fazer, tanto o visual quanto o textual tem uma sincronia incrível e a entrega sai exatamente como a imaginação da dupla formulou. Temos quadros lindos do prédio, que nos cria encanto e nos coloca em casa, como Yuri se sente. Acompanhando o personagem, temos a sensação de um trabalho primoroso, e feito em casa com carinho.
O filme é um denúncia sensível que foge do convencional, traçando uma história cheia de paralelos para contar não apenas sobre a tradição do edifício, mas também sobre as pessoas que ali residiam. Demolir um prédio pode apagar várias histórias, destrói uma ideia, um potencial de algo. Yuri tenta desesperadamente consertar as instalações, mas todos parecem ter apenas desistido de fazer a manutenção, e, talvez, sua mãe também tenha desistido de manter o filho por perto.

O tom melancólico da história é diluído no escapismo de Yuri e nas amizades ao longo do caminho. O filme intercala algumas cenas reais com o astronauta e missões espaciais, que desenham uma metáfora para a audiência ao mesmo tempo que a aproxima do amor que o garoto tem pelo tema. O final inevitável do edifício é engenhoso, e a dupla de cineastas segura bem o tom piegas que ela poderia ter tido, afinal, essa é uma história poética, e por isso evita qualquer clichês dramático hollywoodiano. Liatard e Trouilh são sensíveis e criativos, mas em alguns momentos senti falta de um objetivo mais substancial, flutuamos sem gravidade por um tempo e a sensação é que não pousamos no destino. As analogias, também, poderiam ser mais sutis e menos explícitas, ao mesmo tempo que nos convidam para flutuar pelo espaço, puxam nosso raciocínio e olhar como gravidade para o ponto que desejam.
Edifício Gagarine é um filme político sem adotar o tom palestrante e didático, e nos faz pensar sobre o apagamento da história da cidade e das pessoas que ali residiam. A demolição é um símbolo maior, e percebemos isso através da amiga de Yuri, Diana. A escolha de Alseni Bathily para o protagonismo também é simbólica, e ele entrega demais numa atuação sutil e meiga (dá vontade de dar um abraço nele). O jovem estrela uma narrativa coming-of-age inocente, lírica e expressiva, que ao mesmo tempo contesta as decisões dos adultos, enche os jovens com propósito e sensibilidade.
