O Mauritano – prisioneiro do sistema e da forma

Como fica a democracia quando autoridades descartam a lei? Resulta em um homem preso por 14 anos numa prisão isolada sem receber qualquer acusação formal nesse tempo. O Mauritano não é um filme sobre um caso absurdo, mas uma evidencia das inúmeras falhas do sistema americano. Com uma história jurídica potente, Kevin Macdonald não consegue escapar dos clichês do gênero e entrega um filme com reflexões importantes, mas que carece de personalidade.

Mohamedou Slahi foi sequestrado da sua casa na Mauritânia pelo governo dos Estados Unidos, e, há anos, está aprisionado em Guantánamo. A família nunca foi informada de seu paradeiro, e o prisioneiro jamais foi acusado formalmente ou teve acesso a qualquer meio de defesa. Como isso é possível? Jodie Foster e Shailene Woodley dão vida as advogadas que irão mergulhar no caso e tentar conquistar o Habeas Corpus de Mohamedou, ao mesmo tempo que a acusação, liderada por Benedict Cumberbatch, tentar condená-lo a pena de morte.

Num jogo interessante de desvendar os segredos que ocorreram dentro da prisão, Macdonald nos coloca como juízes, e vamos acompanhando as descobertas de ambas partes diante da estadia do prisioneiro em Guatánamo. A vida de Mohamedou é um mistério e não sabemos se o personagem é cínico ou inocente, com pistas apontando para duas direções, até percebemos que, para o ponto que chegamos, isso não é mais importante.

Com frases explícitas que traçam a mensagem da história, o Mauritano é um filme sobre a lei – instrumento criado para assegurar os direitos e deveres da população, e todo aquela conversa de ~ninguém está acima dela. Só que, para ~certas pessoas, a lei é um empecilho, a lei defende bandido, a lei não obedece a necessidade do indivíduo em colocar a culpa em qualquer pessoa. Só que, quem atua a margem da lei, muitas vezes, é quem está ali para assegurar seu cumprimento. Como pode haver democracia, e como pode qualquer pessoa (inocente ou culpada) assegurar que seus direitos estão sendo respeitados, quando um funcionário da lei a desobedece? Bem, é assim que democracias morrem.

O filme começa nos sinalizando que aquela é uma história real, e nós sabemos que é. Não por ser baseada no livro homônimo publicado, mas porque vimos a história acontecer, Mohamedou é suspeito de ser o recrutador do atentado de 11 de setembro, e isso pode mudar tudo na suas convicções, porém, não pode aos olhos da lei. O Mauritano chega num momento oportuno e mostra a importância da justiça, e o que acontece quando os direitos são violados. Num tempo no qual as pessoas tem cada vez mais questionado as leis, especialmente os direitos humanos, e assistimos todos os dias as autoridades se julgarem acima dela, a reflexão se faz bem-vinda.

Apesar da história potente que reverbera no nosso âmago, o Mauritano não consegue fugir das cenas advocaticias: leituras tensas de documentos, boquinha torta, réu ambíguo, advogada em dúvida e tal. O longa se mantém interessante em relutar nos dar a resposta fácil: Mohamedou é ou não culpado? Porém, não trazer qualquer inovação – é convencional e não explora a potência do elenco estrelado que possui, conseguindo apagar tanto Shailene Woodley como Benedict Cumberbatch, que não acredito ter sido um bom ~casting. Jodie Foster está no piloto automático e entrega o filme a Tahar Rahim, que segura o protagonismo na medida certa, sem cometer exageros.

A força do longa estava na sua mensagem, claro, mas também na forma de conduzir a narrativa, só que a conclusão sequestra esse ponto e se entrega de vez ao clichê emotivo do gênero, com o clássico testemunho emocionado do réu. As cenas finais são realmente lindas e sensíveis, mas Macdonald poderia ter diluído um pouco o tom de triunfo e adotado uma abordagem menos previsível. O filme segue a velha fórmula do formato, tanto na estrutura quanto nos diálogos, e muito da boa ideia de suspense se perde, tornando-o prisioneiro dele mesmo.

Guantánamo é uma mancha na autoproclamada maior democracia do mundo (uma cadeia que se afasta da supervisão da lei e fica em Cuba, tipo?). O Mauritano está em sintonia com o longo O Relatório (2019) e vem da avalanche de histórias que escancaram ~com provas e relatórios (há)~ os absurdos que a CIA e o governo dos Estados Unidos foram capazes de cometer contra a vida humana, pautada no abuso de autoridade e na sede de vinganças – quem comete crimes busca vingança, não justiça. São filmes com caráter documental, e que questionam toda essa benevolência e justiça que os Estado Unidos afirmam empregar.

Mohamedou diz “de onde eu vim, as pessoas temem a polícia”, e depois acrescenta dizendo que a vida inteira acreditou que, na América, a polícia protegia a lei, diferente da sua casa, e essa é uma reflexão que não precisa ir tão longe para ser feita: quantas pessoas no Brasil se sentem verdadeiramente amparadas e protegidas pela lei e pelas pessoas que juraram garantir seu cumprimento?

Uma das maiores promessas de campanha de Obama foi fechar Guantánamo, só que essa ele infelizmente, ficou devendo, e a prisão segue em funcionamento.

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