Perdi meu Corpo chega para confrontar o que esperamos das animações. O longa francês original da netflix traz uma narrativa sensível e muito diferente do que grandes estúdios como a Disney e Dream Works nos habituaram a assistir. Candidato ao Oscar na categoria, Perdi meu Corpo é um filme que transita entre gêneros do cinema, e constrói ternura numa narrativa que tem tudo para ser macabra.
Uma mão decepada foge do que parece um hospital e inicia sua jornada. Enquanto acompanhamos sua aventura por Paris, somos levados ao passado, quando ela ainda tinha um corpo, o de uma criança. Entre memórias e o presente, temos uma terceira linha temporal que mostra Naoufel como jovem adulto, órfão, e tentando sobreviver sendo o pior entregador de pizza de Paris. O filme não é sútil em nos revelar que a mãozinha, no maior estilo Família Adams, pertence a Naoufel, mas só vamos entender como eles vieram a se separar mais para o final do longa. A história parece uma loucura e nos cativa facilmente pela sua bizarrice e sensibilidade, e, apesar de enxergarmos que ela tem muitas coisas nas entrelinhas, o sentimento de “será que estou entendendo ou apenas existindo?” é inevitável.
O nome do filme é Perdi Meu Corpo, e não Minha Mão e essa já é a primeira dica: o longa é sobre a mãozinha, ela é nossa protagonista. Ela e Naoufel representam os dois pensamentos que o filme quer discutir: Livre Arbítrio e Determinismo, respectivamente. Na narrativa da mãozinha, vemos a sua constante recusa em aceitar o destino, desde o primeiro instante, quando ela abre um refrigerador, escala um esqueleto e foge do hospital, o embate com a pomba, a luta contra ratos famintos no metrô e até o gesto carinhoso com o bebê (meu deus, sim, essa mãozinha passa por poucas e boas). Ela representa o poder da escolha, da resiliência e contrasta com a vida de Naoufel.
O jovem ficou órfão ainda criança e foi morar com o tio, alguém nada qualificado para cuidar de outras pessoas, diga-se de passagem. Observando a triste vida do entregador de pizzas, vemos como Naoufel aceitou o destino – sua vida foi destruída e ele sente que seu destino é desaparecer, aceitar as coisas como elas ocorrem para ele. Diria, inclusive, que essa necessidade de ser invisível é uma defesa, um jeito de se esconder do destino e das coisas ruins que ele sempre traz ao jovem. Muito cedo, Naoufel foi levado a acreditar que o controle da sua vida não está em suas mãos – perdão.
É como dizem: coisas ruins acontecem a gente não pode evitar, mas o que esta no nosso controle é a forma como reagimos a esses obstáculos.
Quando acompanhamos a infância de Naoufel, vemos a sua relação com a mão de uma forma normal e natural, juro haha. Juntos, eles sentem e interagem com o ambiente a sua volta, e a fotografia acerta muito em valorizar a banalidade de uma criança e como ela usa a mão para experimentar o mundo. São nesses momentos que a sensibilidade do longa fala mais alto. As cenas de memórias são preto e brancas, num tom nostálgico, e sempre com a cara de lembrança, incompletas, com momentos marcantes, mas que não tem começo e nem fim. E aí chegamos na tal cena da mosca – uma das primeiras do longa.
Impossível não lembrar do clássico episódio de Breaking Bad quando vemos alguém tentar capturar uma mosquinha – e olha que eu nem assisti à série. O pai de Naoufel ensina a criança como pegar o inseto que sempre foge das suas investidas. Essa dinâmica de “pegar a mosca” é onde reside a verdadeira parte filosófica do longa, aquela que a gente nem sempre consegue entender e alcançar, sabe? Para mim, o que o pai quer passar é: para capturar o destino e podermos seguir o nosso caminho, escolher, é preciso se antecipar a ele. O jovem Naoufel não prevê a velocidade com que as coisas mudam, e tenta capturar a mosca onde ela está (não dá certo, todos já tentamos rs). Essa sou eu tentando interpretar o filme para além “relação da pessoa com a sua mão, muito importante e fofinha” – que também cabe haha,
É nessa realidade que o conhecemos quando jovem adulto. A criança brincalhona e curiosa deu lugar a um garoto triste, introvertido e sem ambições, um cara que não conseguiu superar o trauma de perder os pais, entregando seu destino. Porém, isso muda quando conhece Gabrielle, uma cliente que ele deixa muito insatisfeita com seu péssimo serviço, mas que acabam conversando pelo interfone do prédio dela e ele se apaixona. Essa relação dos dois é legal porque permite o paralelo com todo longa: mostra como é possível se conectar, mesmo estando fisicamente distante.
Porém, as escolhas para desenvolver esse núcleo me incomodaram muito. Quando Naoufel se apaixona, ele sai da zona de conforto, para de viver na inércia da vida e toma algumas atitudes sobre seu lugar no mundo – o que é super legal! Vemos ele buscando um emprego novo, se mudando da casa tóxica que morava, indo, inclusive, a festas. A fotografia ajuda nessa percepção, com cores mais claras, clima de solidão dá ar ao romance etc. Tudo seria muito especial, se Naoufel não fosse um stalker romantizado pelo longa. Ele literalmente persegue a Gabrielle, se infiltra na vida da garota e o filme não aborda isso como problemático.
Óbvio que o Naoufel não é o Joe Goldberg de YOU, mas, justamente por não ser retratado como um cara doente é que torna tudo mais perigoso. Não é normal, e nem aceitável, ir ao trabalho de uma mulher que você mal conhece e ficar observando-a. Não é normal seguir essa menina na rua e se envolver com a família dela. Não é normal você se aproximar dela sem falar que já se conheceram anteriormente, e você só não sabia “como manter contato”. Naoufel é fofo, atrapalhado, introvertido e, quando o vemos se apaixonando por Gabrielle ficamos torcendo para ele, e isso chama-se romantizar um comportamento doentio. Existiam várias outras maneiras de contar essa história que não implicassem em Naoufel ser um stalker – é um caso claro de negligência com o tema. Na cabeça dos roteirista ele não fez nada demais, pois é assim que pessoas introvertidas se relacionam, só que não é. Faltou esse cuidado.
Tirando esse vacilo (grave), o roteiro é cheio de momentos carregados de simbolismos e sentimento. A narrativa de Naoufel jovem adulto é a que mais destoa do tom poético da história, mas, também, o que mais se assemelha aos padrões de animações que estamos acostumados – logo, é nesse tempo que as coisas ficam mais dinâmicas. Eu adoro as aventuras da mãozinha, apesar de levemente arrastadas. Sem diálogos, o membro decepado consegue transmitir muito sentimento com seus movimentos (impressionantemente verossímeis) e pequenos momentos de ternura, como quando assiste ao senhor tocar piano e lembra da mãe, ou quando dá a chupeta a um bebê e este a “abraça” – uma das cenas mais fofas.
Essa capacidade de transformar uma mão decepada em algo fofo é um talento da narrativa. Nos diferentes tempos que o filme aborda percebemos que ele dialoga com vários gêneros, temos romance, aventura, terror e surrealismo acontecendo simultaneamente, e tudo muito coeso. O humor tem um timing e um tom que conversam muito com a história, e o filme, no geral, é muito lírico – escorregando poucas vezes. A valorização do cotidiano que o filme procura retratar também é percebida pelos cenários, marcados por arranha-céus e fast foods, deixando a romântica Paris de lado, e conferindo a qualidade de poder ser em qualquer lugar, pois está é uma história comum, quase uma fábula urbana moderna.
Elogiei muito a fotografia, a escolha dos planos, das cores, das movimentações, tudo acredito que conversa e complementa a mensagem do filme, porém, não sou a maior fã do traço. A animação é em 2D e bem nada demais, não é o que nos faz escolher Perdi Meu Corpo ou chama a atenção. Ela combina com o tom e a mensagem, mas, ainda assim, não sobressai. O filme é uma adaptação de Happy Hand, livro de Guillaume Laurant, que atua como co-roteirista (e escreveu Amélie Poulain e percebemos a autenticidade dele na obra).
Perdi Meu Corpo é o primeiro trabalho de Jérémy Clapin no mundo das animações e, podemos afirmar que começou pleno: ganhou o festival de Cannes 2019 com o longa e está concorrendo a melhor animação no Oscar. É uma surpresa positiva, principalmente por se distanciar do padrão atual e criar um filme macabro, fofo e bem peculiar – já nasce conceitual. Acredito que esse caráter bizarro e sensível é o que nos faz imaginar que ele está imerso num universo de metáforas e simbolismos, mas que, na verdade, nós entendemos a mensagem com o coração – e a divergência de percepções é o que enriquecem ainda mais a narrativa. Tenho certeza que, com o grau de delicadeza e simplicidade, cada momento terá uma importância e significado diferente para quem o assiste, e acho isso belíssimo.
O final é controverso, muitas pessoas o classificou como anticlimático, mas eu gostei bastante – é aberto, então esteja preparado. Para mim, toda essa experiência de Naoufel e a sua mãozinha é sobre a vida, que nos obriga a deixar nossas partes para trás, para podermos, enfim, seguir em frente. Uma última observação: ele é meio repetitivo e enfático nas mensagens, muito didático na montagem.
PS: Disponível na Netflix and, se assistir em inglês, é dublado pelo Dev Patel (<3)