Adoráveis Mulheres é um retrato do amor de irmãs num cotidiano extraordinariamente normal

Existem histórias que são atemporais. Este é o caso de Adoráveis Mulheres, escrito em 1868 por Louisa May Alcott e adaptado para o cinema pela brilhante Greta Gerwig. O filme se distancia de ser “mais uma adaptação” e se consolida como o longa definitivo dessa icônica história clássica americana. A família March ganha uma dose de frescor e contemporaneidade, não perdendo sua vivacidade e união.

Adoráveis Mulheres é um coming of age, ou seja, a história de amadurecimento das quatro irmãs March. Acompanhamos a passagem da infância para a vida adulta de Meg, Jo, Beth e Amy – como definem suas personalidades, perseguem seus sonhos e lidam com as consequências e imprevistos que a vida apresenta. As quatro irmãs moram com Marmee, a mãe, e vivem o drama de ter o pai longe, voluntário do exército da União, na Guerra Civil Americana. Adoráveis Mulheres, ou Mulherzinhas, como a tradução literária, é uma história sobre família, que tem momentos engraçados, meigos, de conflito e dramáticos. É sobre a vida e toda a beleza da sua simplicidade.


*Disclaimer: Essa é uma crítica contida de alguém apaixonada pelo trabalho de Greta Gerwig e histórias fofas sobre união das mulheres. Eu amei muito esse filme, mas tentei não ser surtada!

Assim como vários clássicos da literatura, Adoráveis Mulheres tem inúmeras adaptações, sendo a mais conhecida de 1994, com Winona Ryder e Christian Bale no elenco. Isso faz questionar a necessidade de, após pouco mais de vinte anos, colocar o clássico nas telas novamente. Porém Greta Gerwig prova a necessidade de sempre revisitarmos a obra de Alcott e da importância de realizar releituras pois, apesar de ser uma excelente adaptação, a diretora coloca seu olhar e interpretação no material, o que enriquece a trama e provoca uma experiência diferente das anteriores. Greta toma a liberdade de fazer pequena alterações que conversam com tempo atual, mas que em nada prejudicam a obra original.

Greta Gerwig, diretora e roteirista de Lady Bird, comanda o filme e mostra domínio completo da narrativa, das personagens e do rumo de toda a história. A escolha por flashbacks é perfeita e ajuda a estabelecer o sentimento nostálgico que, na fase adulta, as March sentem da infância e a importância que aquele período e suas decisões tiveram nos tempos atuais das irmãs. Greta trabalha com maestria as passagens de tempo e nos insere no mundo lúdico e especial das March, ao mesmo tempo que nos prende na narrativa – já que tanta coisa parece ter mudado na vida delas e só vamos descobrindo aos poucos.

O livro está em ordem cronológica, o que faz a adaptação de Greta, responsável pelo roteiro, saltar aos olhos e evidenciar esse envolvimento e domínio com a história de Alcott. A cineasta ainda prova que conhece em profundidade cada uma das irmãs, conseguindo destacar seus temperamentos sem torna-los caricatos e bidimensionais, a delicadeza que ela utiliza na personalidade das March é uma homenagem ao romance histórico. A fotografia belíssima reflete a passagem do tempo e o estado de espírito das personagens, a alteração sútil de cores fica natural, mas ainda evidente. A cores mais vivas e saturadas quando estamos nas lembranças doces e carinhosas, e os tons mais sombrios quando na atualidade e em momentos dramáticos.

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Não é preciso ter lido a obra original para perceber as transições e os capítulos dos livros. Greta transforma de maneira excepcional uma história de 600 página com fluidez, acentuando os momentos mais importantes e significativos sem perder a essência simples da história. Adoráveis Mulheres é sobre a vida nada excepcional das quatro irmãs e, fruto domovimento mumblecore, Greta tem maestria em conseguir transmitir as banalidades da vida de forma natural, sem parecer supérfluo ou fazer juízo moral. A rotina e relacionamento das irmãs é o principal ponto relacionável com a trama e Greta transmite isso de maneira encantadora.

É nítido o crescimento da diretora, porém o mais interessante é ver como Adoráveis Mulheres é o auge de um caminho que ela vem traçando durante toda a carreira. Greta é especialista em transformar o banal em extraordinário. Seus trabalhos sempre giram em torno de narrativas coming of age – e por isso fica claro o quanto este livro significa para ela e porque é tão natural entender as essências das March. A adaptação de Greta se destaca pois ela coloca sua alma e interpretação na história, ela traz frescor e contemporaneidade ao romance de Alcott. O tom sarcástico que a cineasta adota, as frases pouco naturais, mas super potentes que coloca na boca de Amy e Jo são sua forma de se expressar, mas conseguindo estar em sintonia com a obra original.

Saoirse Ronan vive a impetuosa Jo March. A sintonia com a diretora desde Lady Bird é lapidada numa das personagens mais feministas e icônicas da literatura. Ronan brilha como Jo, transmite o sarcasmo da história, as consequências do seu temperamento e o conflito que vive a personagem. A atuação é digna da indicação ao Oscar e brilha com a clara sinergia entre as duas, provadas pelo testemunho da própria Greta. Ronan e Florence Pugh, que vive Amy, são as estrelas do filme, as personalidades fortes, honestas e afrontosas das duas irmãs rendem momentos divertidos e dramáticos, conseguindo ofuscar, inclusive, a própria Tia March, Meryl Streep!

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Meg e Beth March, vividas respectivamente por Emma Watson e Eliza Scanlen ficam mais apagadas, mesmo sendo as irmãs mais tímidas e caseiras, acredito que faltou um tempero nas personalidades das duas. A timidez de Beth fica evidente, mas o carinho e devoção com a família poderiam ter dado a personagem mais identidade. Enquanto a Meg de Emma Watson assume um ar mais inocente do que acredito que a verdadeira Meg tem, para mim, ela é mais consciente da sua realidade e um pouco mais altiva. Esses detalhes e sutilezas vão muito da interpretação pessoal de cada um para com a história e das escolhas do tom que as atrizes querem dar as personagens, acredito eu.

O mesmo pode ser sentido no personagem de Laurie, vivido por Timothée Chalamet. Ele confere um ar excessivamente jovial ao Theodore Lawrence, mas que, nesse caso, acho que combinou com o tom do filme de Greta. Eu amei a decisão de não o transformar em um galã, mas em um igual perante as March que, sim, o enxergam como um amigo e membro da família. Mesmo que moleque em certas ocasiões, o tom que Chalamet deu ao Laurie condiz com o ar inocente retratado no livro e ajuda na atmosfera mais familiar, nostálgica e ingênua do filme. Foi um personagem que senti falta de ser mais explorado, mas gostei muito do resultado.

Se algo é unânime nesse filme é o amor que cada um colocou na sua realização. O figurino e design de produção são magníficos, a maquiagem, os penteados, tudo é tão dele que faz o espectador ficar hipnotizado e inserido na história de maneira completa. O apego aos detalhes é carinhoso e imersivo, não dá vontade de sair do mundinho das March! Existem momentos de drama que embargaram minha garganta e momentos engraçados de risadas genuínas e alegres. É tão lindo ver mulheres tão diferentes, com sonhos e ambições divergentes se respeitando, amando e compreendendo umas as outras. As March são livres para serem elas mesmas, pois tem uma base forte no amor das irmãs e dos pais, e isso é atemporal.

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Adoráveis Mulheres é o ápice da carreira de Greta Gerwig e consolida seu talento atrás das câmeras. A direção e o roteiro são irretocáveis e, como uma adaptação, ela mostra que fez com o coração e colocou sua interpretação e personalidade dentro do clássico. Mais do que recontar pela milésima vez a mesma história, Greta Gerwig confere sua voz ao romance de Alcott, respeitando suas personagens e trajetória. A experiência da cineasta com o mumblecore e histórias coming of age se mostram essenciais e amadurecidas neste longa. A diretora tem o dom de transformar o simples e extraordinário, a rotina em algo leve e significativo e é isso que mais gosto no trabalho dela.

Mulherzinhas, segundo relatos históricos, é uma autoficção, ou seja, Louisa May Alcott seria Jo March, e aquela seria a história de sua família com uns temperinhos a mais. E, quando acompanhamos Jo no filme vemos que essa ideia faz todo o sentido. Dessa forma, poderíamos dizer que Adoráveis Mulheres é como mais um filme de autoficção, assim como os trabalhos anteriores de Greta e que, como já disse a exaustão, é o novo lance do meio cinematográfico.

É por tudo isso que acho injusto a não nomeação de Greta Gerwig na categoria de melhor direção no Oscar. A maestria com que ela trabalha flashbacks deixam o confuso O Irlandês de Scorsese para trás – pois, em determinado momento daquela saga, esquecemos que estamos vivendo na lembrança do personagem. A delicadeza da direção, da fotografia e o que ela extrai de personalidade das atrizes é excepcional, uma direção tão presente e autentica merecia o reconhecimento.

Adoráveis Mulheres é o melhor trabalho de Greta Gerwig, e o mais maduro. Uma história linda sobre família, o papel da mulher na sociedade, união e que consegue trazer o impacto da guerra nas famílias! A cineasta conseguiu trazer os principais elementos da obra sem perder a sua personalidade, seu tom sarcástico e politizar aspectos que, mesmo de 1868, continuam tão atuais. A esmagadora maioria do público indo conferir ao filme nos cinemas são mulheres, o que é uma lástima. Homens continuam esnobando histórias sobre mulheres feita por mulheres, criando uma barreira quase intransponível para que consigam compreender e criar empatia com outras narrativas. É o clássico: homens, me ajudem a te ajudar!

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