Meu Nome é Dolemite coloca em pauta a representatividade em hollywood, de novo.

O legado de uma mídia majoritariamente branca é o desconhecimento de histórias e criações incríveis de pessoas negras. Rudy Ray Moore foi uma importante figura dentro da cultura afro-americana que eu nunca tinha ouvido falar, assim como muitas pessoas. Vivido por Eddie Murphy, a cinebiografia do comediante apresenta ao mundo uma cultura marginalizada e a influência de sua genialidade. Meu nome é Dolemite estreou de mansinho na Netflix, mas surpreende com sua presença nas maiores premiações.

Rudy Ray Moore é cheio de sonhos frustrados. Gerente de uma loja de discos a mais tempo do que o programado, ele persegue sua carreira de cantor enquanto faz bicos de stand-up. É o espírito otimista e persistente que o leva a ousar e começar a produzir humor sexualmente explícito, numa época em que isso era absurdo e censurado (final dos anos 1960). Suas rimas repletas de baixarias e palavrões conquistam o público negro, e Dolemite, seu nome artístico, logo se vê fazendo shows e gravando discos. A comédia biográfica de Rudy Ray Moore explora o começo da sua carreira, as suas várias facetas – comediante, cantor e cineasta – e introduz o início do Blaxploitation – Ver em inglês pois o filme tem muitas rimas e trocadilhos que não sei se funcionam na versão dublada, mas são fundamentais na história.

Meu Nome é Dolemite tem aprovação de 97% no Rotten Tomatoes, e apesar de ser um filme que me apresentou um universo desconhecido, acho a nota desproporcional. A cinebiografia de Rudy Ray Moore perpassa pelos pontos mais importantes de sua carreira e aqueles no qual exerceu maior influência. O começo é difícil de ganhar o espectador, especialmente aqueles que nunca tiveram contato com o personagem. Ele é carismático, assim como todos seus amigos e parceiros, mas a demora em entender aonde estamos indo é cansativa. Não sei se culpo ao filme ou a minha ignorância em relação ao tema – acredito ser um misto.

A principal barreira para se conectar com a história é o estilo de humor de Dolemite. O filme é um choque de culturas raciais e geracionais: o humor sexualmente explícito não me agrada, o que me levou a não entender o sucesso e a graça do comediante. Na época, ele foi um quebrador de tabus, seu trabalho era direcionado ao público negro e este não era considerado pelas grandes mídias e agências. Ou seja, ele era muito famoso, influente e inovador, mas dentro de um nicho extremamente marginalizado. Essa contradição poderia ser melhor explorada dentro do filme e criado um drama mais potente.

Nas décadas de 1960 e 1970 os conflitos raciais nos Estados Unidos eram latentes, e Moore deve ter sofrido muito com isso, o que torna seu sucesso e luta ainda mais admiráveis. Porém o filme não explora tanto esse lado da carreira do comediante, abrandando demais algo que faz parte da sua trajetória. Meu Nome é Dolemite foi escrito e dirigido por brancos, seguindo os moldes do ganhador do Oscar Green Book, e evidenciando todos os problemas que esse filme medíocre tem. A cinebiografia é informativa, otimista e aventureira como uma Sessão da Tarde muito bem-feita, mas que carece de drama, embates e reflexões. Ao final do longa eu entendo que Rudy Ray Moore é um ícone no cenário cultural afro-americano, e o filme atenua o impacto da sua trajetória.

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De forma alguma essa crítica procura diminuir a importância do filme, pelo contrário, acredito que passou da hora de conhecermos figuras como Dolemite e dar os holofotes e créditos que pessoas marginalizadas merecem, reconhecer sua influência e valorizar suas contribuições criativas. Porém, acredito que o filme poderia ter sido mais intenso e menos informativo. Poderíamos ter visto mais da vida pessoal de Moore, do impacto na juventude negra que estava exercendo para que o espectador conseguisse dimensionar melhor sua influência e importância. Faltou um contexto da época que auxiliasse àqueles menos a par de Dolemite sobre a revolução que este estava causando na indústria do entretenimento.

A parte técnica de Meu Nome é Dolemite é excelente. A direção de arte consegue nos transportar para a época com maestria: os cenários são meticulosamente elaborados, o foco no detalhe dos objetos, a ambientação da loja de discos, os cabelos, figurinos, tudo é lúdico, exagerado e realista ao mesmo tempo. Acredito que a parte estética reflete muito a personalidade de Rudy Ray Moore, assim como a interpretação genial de Eddie Murphy. O ator é a encarnação do comediante, os jeitos, o figurino, e a transição da pessoa de Moore para o personagem de Dolemite é brilhante. Com certeza Eddie Murphy é o ponto alto do longa.

Outros atores também estão excelentes e nutrem uma sinergia muito especial com o filme como Craig Robinson (Doug Judy de Brooklyn 99, amo), Mike Epps, Tituss Burgess (Unbreakable Kimmy Schimit, amo), Snoop Dogg e, principalmente, Keegan-Michael Key. O elenco se encaixou muito bem com a proposta e protagonizam cenas engraçadas e divertidas, com número musicais muito bons. Eles fazem jus a proposta de comédia biográfica (e ao fator Sessão da Tarde), a caracterização é excelente. Destaque especial a Da’Vine Joy Randolph que interpreta Lady Reed – uma mulher negra e gorda na comédia que faz discurso muito bonitinho sobre a importância da representatividade e de dar uma chance as pessoas de talento excluída dos padrões mainstreaming.

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É aquilo, Meu Nome é Dolemite é muito bem executado, perfeitinho e redondo, mas poderia ter sido mais – ousado, para honrar o legado de Moore. A cenas que fazem referência aos filmes de Blaxploitation são incríveis e dão uma vivacidade ao gênero dos anos 1970, do qual Dolemite foi o precursor. Tanto isso quanto as piadas deixam claro que a dupla de roteiristas Scott Alexander e Larry Karaszewski estudaram bastante a trajetória de Dolemite, sua influência e trabalhos. Porém, assim como no meu caso, o filme transparece que faltou um fator muito importante: a identificação e paixão, algo muito subjetivo, mas que a gente sente assistindo.

A dupla de roteirista é experiente, escreveram a temporada de American Crime Story sobre o assassinato de Giane Versace, Grande Olhos, O mundo de Andy, O Pestinha, entre outros. A filmografia deles é preenchida por comédia dos anos 1990 e histórias reais, mas a junção desses dois mundos não foi a ideal no caso de Meu Nome é Dolemite. A questão é: não poderiam ter escolhido um roteirista negro para realizar esse trabalho? Alguém que a figura de Moore fosse mais presente, influente e admirada?

A mesma pergunta faço para a escolha do diretor Craig Brewer. Apesar de grande parte de sua experiência ser em séries, os poucos filmes do diretor sugerem maior proximidade com a cultura negra, e ele está escalado para dirigir Um Príncipe em Nova York 2, com Eddie Murphy. A direção de Dolemite é boa, cumpre sua função, mas não se destaca. Presta homenagem ao gênero de blaxploitation, mas também falta um temperinho. Quando assistimos as cerimonias de premiação, percebemos a clara diferença num filme sobre negros feito por negros e filmes sobre negros feito por brancos, e infelizmente, Dolemite está no segundo grupo.

DOLEMITE IS MY NAME!

Após a polêmica do Oscars So White em 2016, tivemos vários filmes excelentes ganhando destaque e, inclusive, Moonlight levando a estatueta em 2017. Porém, quando analisamos os principais indicados aos prêmios este ano, 2020, e os mais cotados ao Oscar percebemos um retrocesso. Não tivemos tantas produções feitas por negros ano passado e NÓS, de Jordan Peele não está ganhando o espaço que merece e que teve com Corra. O que faz questionar os verdadeiros impactos que o movimento teve na indústria – será que alguma coisa realmente mudou? Com o prêmio de melhor filme de 2019 indo para Green Book, a minha percepção é de que não.

Meu primeiro contato com Meu Nome é Dolemite foi fazendo o GD News (toda sexta-feira no stories). Lançado em outubro de 2019 na Netflix, o filme foi pouco divulgado e logo se perdeu no imenso catálogo do streaming. Isso por si só já diz muita coisa: a escolha dos filmes que serão massivamente divulgados sendo impossível qualquer um não ter ouvido falar é política. A cinebiografia de uma grande influente da cultura afro-americana merecia mais destaque, principalmente pela história já tê-lo deixado marginalizado tempo suficiente.

Meu Nome é Dolemite é mais uma aposta da Netflix no circuito de premiações, mas quase um acidente de percurso. A diretora Lulu Wang, do indicado The Farewell (A Despedida) disse em entrevista que ela poderia aceitar estrear seu longa pela Netflix, mas que ele logo se perderia no catálogo, pois ela não tem um nome forte ainda e o streaming não investiria na sua divulgação, o que a levou optar por uma distribuidora pequena, menor orçamento, mas ganhar salas de cinema suficiente para aparecer nas premiações. Dolemite é uma exceção a essa regra: por algum motivo, talvez cota de consciência “vão começar um movimento de novo” dos responsáveis pelas indicações, ele esteja dando as caras nas premiações.

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Isso não significa que não acho legítimas as indicações que o filme recebeu, Eddie Murphy está sensacional no papel e merece, sim, esse reconhecimento e indicação, assim como as demais categorias. Os questionamentos que levanto são: onde estão as excelentes produções feitas por negros? Por que eles não estão sendo cotados para produzir obras sobre seu povo? Por que ainda temos tão poucos cineastas negros? Por que Meu Nome é Dolemite não teve tanta divulgação quanto filmes ruins que a Netflix empurra para gente? Os filmes e a indústria do entretenimento são objetos políticos, pensar essas questões é entender o momento social em que estamos e fundamental para refletir o quão efetivo a busca por representatividade em hollywood está sendo de fato. 

Em determinada cena, Dolemite lança seu filme e as críticas dos principais veículos são negativas – decretam a primeira obra de blaxploitation um flop. Porém, o mesmo filme é o mais visto nos Estados Unidos naquele ano. Isso é muito significativo – os críticos de cinema, formados esmagadoramente por homens brancos cis heteros, não estão em sintonia com as demandas do povo, com o gosto popular ou com a representação em tela da diversidade. Independente das minhas divergências com a linha criativa de Rudy Ray Moore, o cara criou um gênero cinematográfico referenciado atualmente, colocou os negros como heróis, levou a identidade de seu povo para o mainstreaming americano e influenciou um dos ritmos mais populares no mundo: o rap. Muitas vezes os críticos estão presos em seus próprios umbigos contemplando obras que pouco representam e/ou acrescentam as pessoas (Oi, O Irlandês), e é preciso valorizar mais esse contato com o público diverso que consome audiovisual.

O cinema é reflexo da sociedade, e quando chegamos e vemos, de novo, a valorização de obras classe média branca sofre apenas, estamos passando uma mensagem: marginalizando e fechando portas para obras que não são destinadas a esse público, mas que falam com a maior parte do resto do mundo. Quando forço a tecla da representatividade não busco apenas mais mulheres brancas (eu), eu quero ver negros, LGBTQ+, asiáticos, latinos, enfim, diversidade – como o mundo real é. História de um Casamento foi um dos meus filmes favoritos de 2019 e é puramente o padrão do padrão e não tem nada de errado em gostar e premiar essas obras. O errado está em não dar recursos, espaço e destaque para outras obras tão boas quanto feitas por pessoas fora do padrão.

Eu gosto de levar uns tapas na cara assistindo aos filmes. Meu Nome é Dolemite poderia ter vários momentos que me fizessem refletir sobre racismo e produção cultural negra, mas não teve. Como Green Book, o filme foi feito para fazer as pessoas brancas se sentirem bem e se informarem sobre um ícone negro de maneira leve e engraçada. Um filme sobre negros feito para brancos, pois quem fez foram brancos. Uma oportunidade de fazer uma audiência mimada e trancada numa bolha crescer, mas que foi desperdiçada por vários erros, desde a produção até a distribuição e divulgação do filme. Meu Nome é Dolemite conta com um dos melhores papeis da carreira do Eddie Murphy, indicado ao Globo de Ouro e ao Critics’ Choice Awards como melhor ator. O filme concorre como melhor comédia nos dois prêmios também, e a categorias técnicas como melhor figurino e maquiagem. Vale a pena as duas horas investidas no longa, disponível na Netflix – um pouco difícil de engrenar, mas tenha fé que melhora.

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