O Farol mostra o terror de viver isolado

Existem filmes que nos proporcionam uma experiência tão singular que se torna difícil falar sobre eles. O Farol, protagonizado por William Dafoe e Robert Pattinson, é um desses casos. O longa de Robert Eggers mostra a evolução do cineasta em relação à Bruxa, e caminha para a sua consolidação não apenas no cenário do terror, mas como uma das pessoas mais autorais atualmente.

Em O Farol acompanhamos a chegada de um novo zelador a um farol localizado numa ilha deserta. Sem saber ao certo o que aconteceu com seu antecessor, o personagem de Pattinson é subordinado ao de William Dafoe, um velho que misterioso, ranzinza e que guarda muitos segredos. O trabalho pesado do novo funcionário junto com o isolamento, a chatice do velho zelador e os mistérios que permeiam a ilha se confluem e ditam o ritmo de uma história imersiva, doida e potente – com uma vibes pirata/marinheiro.

Quem assistiu ao excelente A Bruxa sabe como é difícil falar sobre o longa sem entregar a experiência surpreendente e louca que o filme nos causa. O Farol é um passo além do cineasta Robert Eggers, que se utiliza da mesma temática, mas elabora um filme mais complexo e denso. Não é uma obra onde as coisas vêm mastigadas, muito pelo contrário, num primeiro momento eu estava perdida, confusa, e frustrada por não compreender a mensagem. Mas a verdade é que não é a mensagem que é difícil, ele é linear e simples, a dificuldade está em abrir a mente para o que o diretor está nos propondo discutir com aquela história.

O que eu mais gosto nas duas obras de Eggers é como ele prova que dá para fazer um filme excelente, denso, reflexivo, com pouco. Em O Farol, o longa tem pouquíssimos cenários, basicamente dois atores, mas que se mostram mais que suficientes para criar uma experiência sensacional. Eggers também trabalha com Design de Produção, ou direção de arte, e a forma como ele usa isso a favor do filme é excepcional. As roupas, a sujeira, a ambientação do século XIX, os objetos, tudo auxilia na imersão do espectador e na própria construção do enredo: os objetos são banais, mas muito importantes no contexto da história.

A imersão dos irmãos Eggers foi absoluta no mundo dos zeladores de Faróis do século XIX – o linguajar, as preocupações, as superstições … o filme procura oferecer um retrato fiel a época e esses sujeitos. A escolha de ser em preto e branco e o formato da tela também contribuem com esse apuro estético relacionado ao ambiente, assim como os quadros. A direção acompanha o ritmo do roteiro e o estado mental dos personagens, com a câmera e montagem, Eggers passa para o espectador o humor dos dois homens isolados, o sentimento e confusão de cada um. Ele é contado como um conto antigo, uma lenda, e isso fica muito bem representado.

Quanto mais penso sobre O Farol, mais admiro e gosto do trabalho de Eggers. Não é uma obra fácil, óbvia, mas extremamente provocativa – e acredito que o cinema atual carece dessas propostas ousadas. Contrariando o que está sendo feito no mundo blockbuster, O Farol é um excelente escape do padrão Hollywood e um mergulho num filme autentico. E essa é a resenha mais misteriosa e que diz menos possível (perdão), mas acredito que este é um filme que quanto menos saber, melhor será toda a experiência. Não tem graça contar, para cada pessoa ele terá seu impacto particular, e induzir a interpretação com o meu olhar pode prejudicar esse momento.

o farol critica do filme

Mas, para quem está muito curioso, vou dizer um pouco, sem spoilers, do que o filme propõe e, para a surpresa de todos, falar de um aspecto do trabalho de Eggers que vejo como falho. Tanto A Bruxa quanto O Farol discutem crenças e isolamento. O mote dos filmes é bem similar, sendo que no segundo essa reflexão foi aprofundada e intensificada. Uma das primeiras coisas que aprendemos quando ouvimos falar de sociologia é a máxima: o ser humano é um ser social. Não fomos feitos para viver em isolamento. Não importa o tamanho da comunidade, mas é necessário que ela exista para a manutenção da sanidade.

Outra característica muito humana é a fé, a crença em algo maior, numa salvação. A criação de religiões desobedece ao pragmatismo, é envolta em mistério, hierarquia, julgamentos, superstições, mas inevitável a quase todas pessoas – a história da humanidade é acompanhada de crenças em algo sobrenatural, um poder divino. Juntando essas duas realidades tão humanas, Eggers debate a influência desses fatores nas pessoas, no destino e caráter delas. O cineasta não entre no mérito moral, o foco não é julgar o que é certo e errado, mas como esses fatores afetam as relações entre as pessoas e com elas mesmas.

O que os irmãos Eggers propõe é uma reflexão sobre o papel da comunidade e da religião. Assim como em A Bruxa, O Farol é um filme de terror, mas é um terror puramente psicológico. Diria que a segunda obra do diretor dá menos medo que a primeira, mas mexe muito mais com o nosso interior, é mais perturbadora. O Farol não é um filme fácil e não são todos os públicos que irão gostar da obra. Num primeiro momento não é para ser dissecado e coerente, mas uma experiência para ser sentida, internalizada. Às vezes, a gente não sabe explicar, organizar as ideias de forma lógica e racional para passar para o outro, mas a gente sabe que entendeu, que aquilo significou algo: O Farol é isso, e eu amo essa sensação – a religião também é isso.

o farol robert pattinson e william dafoe

Agora, a minha ressalva é em relação ao papel das mulheres nessas duas obras de Eggers. Apesar de reconhecer a genialidade do cineasta, me incomoda como ele ainda não sabe abordar a questão feminina dentro da discussão proposta. Em A Bruxa, a protagonista vivida por Anya Taylor-Joy é vítima das crenças da família na culpabilidade da mulher. Porém, a conclusão (sem spoiler) transmite uma mensagem ambígua: a menina se libertou, ou ainda está presa a uma crença governada por uma figura masculina?

Em O Farol seguimos com a mesma coisa: a mulher é uma vilã, corrompe o homem, seduz para o mal caminho e é objetificada no desejo masculino. Dada a vastidão do debate sobre religião proposto por Robert Eggers, essa questão da mulher nas mitologias criadas reflete que o próprio cineasta também está preso em crenças opressivas. A sua visão não é tão progressista e atual como sugere suas obras pois, no cerne dos dois trabalhos, a figura feminina ainda é negativa, associada ao pecado, promiscuidade, tentação. No filme A Bruxa, Eggers tenta trazer essa visão opressiva da mulher numa sociedade que a culpa e repreende por tudo, mas a conclusão tem uma interpretação ambígua. Por isso acredito que é uma falta de olhar feminino na obra, mas que as intenções podem ser positivas, só precisam ser lapidadas.

o farol é bom mesmo

O Farol é um dos melhores filmes de terror contemporâneos. Eggers encontrou no gênero uma abertura para o debate, com uma obra rica e que compõe um excelente momento para o terror, junto com Jennifer Kent (Babadook) e Ari Aster (Hereditário). As atuações de William Dafoe e Robert Pattinson são espetaculares, os dois possuem uma química e cumplicidade incrível na tela e ajudam a dar a autenticidade e excelência ao filme. Eu juro por tudo que Robert Pattinson é um ator maravilhoso e Crepúsculo não tem nada a ver com ele haha. O Farol é perfeito para começar 2020 com uma dose de desgraçamento da cabeça necessária, e, mesmo em janeiro, já acho que será um dos meus favoritos do ano.

No quesito premiações, O Farol conta com cinco indicações ao Independent Spirit Awards – como o próprio nome sugere, é organizado pela Film Independent, empresa sem fins lucrativos cuja missão é defender independência criativa e apoiar artistas que incorporem diversidade, inovação e singularidade de visão em suas obras. Ou seja, se não ficou claro, O Farol é um filme independente e baixo orçamento para padrões hollywoodianos – indie para os íntimos. As categorias são: Melhor Ator com Robert Pattinson, Melhor Ator Coadjuvante com William Dafoe, Melhor Direção, Melhor Fotografia e Melhor Montagem. A fotografia também foi indicada ao BAFTA e ao Cristic’s Choice Awards, neste Dafoe também conquistou a indicação por ator coadjuvante. Minha torcida é para que o longa conquiste pelo menos um troféu!

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