Martin Scorsese é um gênio do cinema, o cineastra de 77 anos acumula prêmios e longas icônicos, entre eles, os de gangster marcam presença mais notória. Dito isso, se torna redundante enaltecer O Irlandês, seu recente lançamento e projeto mais caro da carreira. Com suas 3 horas e meia de duração e um elenco formado por Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci, o diretor revive os melhores anos da sua carreira e constrói um épico que não tem pressa alguma em contas sua história, que é real. No entanto, durante a experiência me vi obrigada a fazer a advogada do diabo em certos aspectos.
O Irlandês é sobre Frank Sheeran, um motorista de caminhão da Filadélfia que entra para a máfia, fazendo amigos, serviços sujos e ganhando recompensas. Frank, vivido por De Niro, se mostra uma pessoa violenta e inescrupulosa ao longo do filme, apesar de ser calmo e na dele, o que contrapõe a personalidade e enriquece o personagem. Ele fica amigo de Russell Bufalino (Joe Pesci), o chefe da máfia, que o protege e inclui nos planos mafiosos. Frank também acaba ficando muito próximo de Jimmy Hoffa (Al Pacino), líder do sindicato dos caminhoneiros. Eventualmente Frank se vê numa encruzilhada e precisa escolher de que lado irá ficar: Russell ou Jimmy.
Todos os personagens do filme são reais, bem como suas mortes e encrenca que se envolveram. O roteiro de Steven Zaillian é baseado no livro de não ficção de Charles Brandt, e quando colocamos isso em perspectiva tudo fica muito mais louco. É impossível não fazer analogias com os grandes filmes do gênero, em especial, O Poderoso Chefão e também com as obras anteriores de Scorsese como Os Bons Companheiros.
Todos os elementos do gênero e do diretor estão presentes, ainda que de forma diferente do que estamos habituados. Scorsese mantém sua autenticidade, mas entrega boa parte do ritmo narrativo à personalidade de Frank – a longa duração do filme conversa com os sentimentos do personagem, principalmente para o final, assim como os momentos frios e a trilha sonora. O carinho que o diretor tem pela obra transborda a tela, fica nítido que ele está fazendo arte, colocando seu sentimento, quem ele é, nesse trabalho. Em O Irlandês vemos a personalidade artística de Scorsese sem amarras, vulnerável, exaltada.
A fotografia do longa é a parte técnica que eu mais gostei, ela é linda e será um sacrilégio não concorrer ao Oscar 2020. O filme como um todo deve marcar sua presença na premiação da academia, mas a cinematografia foi de outro mundo. Por isso, não assista a essa obra exuberante de três horas no celular, a experiência exige (muito) do expectador e você precisa de uma tela grande e um conforto (sentado, se deitar, já sabe zzz). Os planos são lindos, poéticos e intensos, e o movimento de câmera do Scorsese me fez sentir saudades de uma fotografia com significado, bem pensada.
As atuações das três principais estrelas do filme estão incríveis, com os atores vivendo um dos seus melhores momentos. De Niro é o protagonista e figura onipresente no longa, sua atuação é contida, e ao mesmo tempo que mostra respeito e lealdade, ele é frio e calculista. Chega um momento do filme que Jimmy Hoffa diz “é difícil saber o que você está sentindo, não demonstra” e é bem isso. Scorsese se demora na construção de Frank e, com as três horas de filme, claro que tem espaço de sobra para desenvolver o personagem e mostrar suas várias nuances. Al Pacino oferece um contrapondo a essa personalidade calma de De Niro, Jimmy é impulsivo, estourado, bocudo, como o ator gosta de entregar. Essa passionalidade faz com que se torne mais fácil de criarmos empatia com o personagem de Al Pacino, ele se abre mais para a audiência. Russell, Joe Pesci, já entra na linha fria e paciente de Frank, como líder da máfia, ele nunca se exalta, mas mesmo assim exala poder. Um personagem intrigante e misterioso.
Apesar da história se concentrar nesses três personagens, o filme tem um milhão deles. O longa chega a fazer uma piada, em certo momento, dizendo “Qual Toby você está falando? Todo mundo é Toby”, e, de fato, demora para conseguir associar quem é cada Toby, principalmente porque às vezes chama Toby, às vezes pelo sobrenome, e todos tem a cara igual: o homem branco mafioso.
Esse é o ponto de virada da crítica!
Como falei acima, esse foi o filme mais caro do Scorsese, que, convenhamos, tem um histórico de filmes alto orçamento. Isso porque ele usa de tecnologia para rejuvenescer os atores – acompanhamos o trio mencionado acima por vários anos. O efeito combinado com a maquiagem está incrível e, se você não sabe como está a cara deles hoje, não procure e se surpreenda assistindo ao filme. Porém, todo esse gasto me faz pensar: precisava? A escolha de Scorsese por trabalhar com esse elenco e rejuvenescê-los me deixa desconfortável pois ele poderia optar por atores mais jovens – como Coppola fez em O Poderoso Chefão. Essa panelinha do diretor, apesar de eu compreender a sincronia deles e entender a proposta, me incomoda.
O meu grande problema com o filme foi que ele é incrível, mas não conversa com o ano de 2019 – além da utilização de tecnologia. Scorsese é um senhorzinho de outra época contando uma história dos anos 1970, mas isso não é justificativa para não se atualizar. Os personagens são todos o homem mafioso padrão, tão padrão que tirando os três principais, é fácil de confundir e se perder no meio de tantos nomes e apelidos e rostos parecidos. As esposas quase não têm falas, quiçá relevância no fluxo das histórias. Robert de Niro não tem uma conversa importante com a sua esposa, nem com as filhas. É frustrante.
Anna Paquin (nossa Vampirinha de X-Men) é Peggy Sheeran, filha de Frank. A menina é representada como tímida e na dela, mas pessoas tímidas falam. Ela tem uma importância ao decorrer da história, mas essa relevância se restringe ao desenvolvimento do protagonista masculino, no caso, o pai. Durante as 3 horas e meia não conseguiram desenvolver sequer uma personagem feminina, nem Peggy, que sempre é descrita pela boca dos outros, homens, óbvio. As esposas de Russell e Frank se confunde tamanha a falta de personalidade e presença nas cenas. Infelizmente esse descaso com personagens femininas é um padrão nos filmes do Scorsese, mas, em 2019, não dá mais para ser aceito com naturalidade.
Outro ponto nulo de diversidade são os negros. Também uma crítica recorrente dos filmes do diretor que, como sempre, dá palco apenas para o homem branco padrão. Como no caso das mulheres, é compreensível que, como é uma máfia italiana não se tenha negros, mas existem outros núcleos e possibilidades. Além disso, o diretor não hesita em colocar frases racistas sem um contraponto, crítica ou mesmo necessidade – alguns aspectos históricos podem ser criticados, contra argumentados, melhor representados. Se fosse um caso isolado seria uma situação, mas, infelizmente, ao olharmos para toda sua filmografia percebemos uma constante e ele, como uma figura imponente cinema poderia mudar esse padrão.
Como bati na tecla durante toda a resenha, o filme tem muitas horas e, mais do que acho que seriam necessárias. Sou uma pessoa que gosta de filmes longos, mas o tempo não deve ser sentido. Quando você começa a ficar inquieto, olhando a hora, vendo quanto tempo falta (e o desespero de faltar 1 hora tendo já passado 2) é que ele está se alongando mais do que precisava. Pesou, para mim, não ter criado uma conexão genuína com Frank Sheeran, o que, consequentemente, me afastou da história. As coisas demoram para fazer sentido, para o expectador entender onde tudo aquilo está indo, e isso gera impaciência. Eu não estava envolvida emocionalmente. Senti o tempo, sai dele exausta fisicamente.
Eu sou a pessoa que defende Roma com unhas e dentes, que assiste Senhor dos Anéis na versão estendida, que ficou grudada na TV durante todo o primeiro Poderoso Chefão – e O Irlandês não conseguiu fazer isso comigo. Uma vez no sofá de casa e desconectada, pronto, eu pausava o filme, ficava com muito sono, enfim, um desastre – perdão, cinéfilos, sei que falhei nesse quesito.
Acredito, também, que parte desse distanciamento que tive com a obra foi o enfoque principal: homens brancos poderosos puxando saco um do outro. Observar como funciona o poder e, que mesmo sendo um lado criminoso é igual ao lado “legal”, me revolta. Aquele bando de homem fazendo fofoca, intriga, babando ovo para o outro, não tem como me pegar! Em certo ponto fica claro que Frank se importa mais com a relação com os brothers da máfia do que com a família, e tudo se torna hipócrita para mim. A intenção era passar os sentimentos do personagem para o expectador e conseguiu, assim como Frank, eu não senti nada. Acho pedante quando querem que a audiência sinta compaixão por um homem que foi egoísta a vida inteira e, lá no final, fica “poxa” #desabafei. Em defesa do Scorsese, eu sei que é um filme sobre poder, mas existem outros 400 que abordam isso desse jeito.
Nesse ponto você pode estar “Thais, lamento, mas você não gosta de filme de gangster e do Scorsese” e não é verdade. Eu sou apaixonada por diversas obras dele, sendo a minha preferida Silêncio – SIM, pasmem, uma das mais diferentonas e negligenciadas do diretor. Eu amo o jeito do Scorsese de filmar, as fotografias inacreditáveis, os movimentos de câmera e O Irlandês tem tudo isso! Fica claro que ele não poupou recursos, com um design de produção impecável e cenas lindas. Mas o roteiro arrastado, o epílogo de meia hora e a falta de atualização de certos pontos do diretor me deixaram desanimada. Eu reconheço que é uma das obras primas de Scorsese, ele só não funcionou para mim.
Prova disso é a nota de 94 no metascore e 96% no rotten tomatoes. Espero encontrar O Irlandês em várias categorias das principais premiações. É fofo ver Scorsese e a equipe se divertindo e amando tanto esse projeto durante as gravações – mesmo sendo uma panelinha intensa hihi. A avaliação de O Irlandês empata com Os Bons Companheiros e é uma das maiores da carreira do diretor – ou seja obra prima acessível para todos na Netflix, mas assista na TV, com calma, paz, e preparado para isso. Minha dúvida é como Hugo Cabret está atrás desses filmes todos sendo tão perfeito. Enfim, não é um filme para todo mundo, mas um deleite para quem é fã de Scorsese e não encontrará esses obstáculos na obra (eu to me sentindo megera, mas é meu trabalho e nem entrei na polêmica recente filmes da marvel haha).
2 respostas para “O Irlandês é incrível e muito Scorsese, mas isso também pode ser um problema”
[…] categoria de melhor direção no Oscar. A maestria com que ela trabalha flashbacks deixam o confuso O Irlandês de Scorsese para trás – pois, em determinado momento daquela saga, esquecemos que estamos vivendo na […]
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[…] em seus próprios umbigos contemplando obras que pouco representam e/ou acrescentam as pessoas (Oi, O Irlandês), e é preciso valorizar mais esse contato com o público diverso que consome […]
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