Família Addams é sobre o horror de ser padrão

A Família Addams costuma ser a porta de entrada no universo do terror. O clássico atemporal está de volta em forma animada para se manter imortal no imaginário de todas gerações. A função da excentricidade e da introdução ao submundo característico permanece intacto e divertido, o que camufla a história fraca. O filme se sustenta muito pela nostalgia e peculiaridade caricata dos personagens, funciona, mas tinha muito mais potencial.

Com o objetivo de se apresentar a nova geração, o longa começa com o casamento do nosso casal favorito: Gomez e Mortícia. Sem se estender muito, vemos a formação da família e a constituição da clássica mansão mal-assombrada, lar dos Addams. Vivendo em isolamento por quase 13 anos, de repente a mansão ganha foco indesejado dos moradores da cidade, principalmente Margaux, designer de interiores e apresentadora do programa de makeover da região. Enquanto tentam conviver com os vizinhos, os Addams ainda precisam lidar com os familiares que estão chegando para a cerimônia de iniciação na vida adulta de Feioso.

Eu sempre adorei esse clima trevoso, mas carinhoso – uma coisa meio do mal sendo bondosos, estilo Tim Burton (apesar dos Addams serem bem anteriores a ele). O filme mantém essa essência e a personalidade tão característica de cada membro da família. Tudo deles é o oposto, os adjetivos, as expressões, são os mais nojentos e desgraçosos possíveis, o que entra muito em conflito com o excesso de afeto de cada um: essa contradição sempre foi a fórmula mágica e original dos Addams.

Wandinha é minha personagem favorita e espero que ela não tenha escoliose depois de levar o filme nas costas. O desgosto e apatia com a vida, a poética deprimida, e a curiosidade em conhecer o mundo além da mansão são o que mantém o filme em movimento. A dinâmica dela com Mortícia é excelente e juntas protagonizam as melhores falas e momentos, com as discordâncias entre mãe e filha adolescente. Do outro lado da família temos Gomez e Feioso, o arco de pai preparando o filho para ritual clássico da família é divertido, mas fica ofuscado pelas duas. Essa cisão e falta de interação e complexidade nos relacionamentos familiares também contribuem para o empobrecimento da história de modo geral.

O plot principal, apesar de ter uma mensagem fofa e positiva que é o cerne de toda a criação dos Addams é muito mal explorado e desenvolvido. A previsibilidade do filme prejudica a experiência, nos envolvemos mais com os personagens pelo que eles representam do que com a história em si – a gente meio que não se importa com o desenvolvimento da narrativa, porque ela é chata. O roteiro acerta na construção dos personagens, na ambientação, nas críticas ácidas, mas esquece da outra parte essencial: a história é genérica, e o excesso de personalidade dos Addams fica conflitante com a falta de um enredo interessante.

família adams vale a pena

Acredito que as 1h45min tenham sido mal administrada pelo roteiro. O começo e o final são muito corridos e poderiam ser melhor aproveitados para construir complexidade na família e na história, visto o segundo ato barrigudo. É um filme infantil que, ao mesmo tempo que busca despertar a nostalgia nos adultos (e consegue, a cena final da abertura clássica é impagável), esquece de tentar construir uma história com camadas para ser absorvida por ambos públicos. Ou seja, a história simplista foca apenas nas crianças.

Deixando esse deslize de lado, o filme é super bem feito e agrada muito os fãs do excelente Hotel Transilvânia. Assisti dublado e foi uma experiência muito boa, adaptou bem os termos e o tons peculiares das vozes dos personagens, mas, em inglês, o Gomez é interpretado por Oscar Isaac e só consigo pensar que deve ser perfeito – ele é A CARA do Gomez haha. Charlize Theron vive Mortícia, Chloe Grace Moretz é Wandinha e Finn Wolfhard dá voz ao Feioso – um elenco muito perfect match. Wolfhard é excelente dublador e vejo uma carreira sendo construída além de Stranger Things, já que ele é o Player, em Carmen San Diego.

Margaux, a antagonista na voz de Allison Janney, é uma personagem que conversa muito com a cultura atual e isso é uma qualidade do filme: ele sabe ser contemporâneo. Família Addams insere as tendências e tecnologias atuais de uma forma natural e a crítica que tecem nesse aspecto é excelente. Na onda dos mil programas de reformas que vivemos (eu vejo vários, como Irmãos a Obra e Ame-a ou Deixe-a), o longa critica sem rodeios a homogeneização das casas, a falta de personalidade e como esses programas transformam tudo na mesma coisa. Apesar de muito fã, dada a quantidade de episódios que já assisti posso afirmar que sim, vários designers deixam a casa de todo mundo meio igual.

Esse aspecto conversa com o momento atual, quase um update do American Way of Life, e com a proposta dos Addams: uma família que foge dos padrões, é autêntica. Mesmo que autenticidade seja exigida por todos os lados, o que vemos é uma contradição no discurso: nunca se pediu tanto por originalidade, e o que vemos é um boom de pessoas iguais. Nesse contexto a família Addams sempre veio como transgressora das regras, vivendo conforme sua verdade, adotando a sua estética, seus valores e costumes, e sendo uma família unida e amorosa independente do que os outros possam pensar.

família addams critica

O arco do Gomez e do Feioso é super bonitinho, a relação dos dois e os conflitos com tradições familiares e o que deve ser valorizado nos seus membros. Tudo fala muito atualização, novos tempos, nova geração. Essa ideia central é trabalhada nos dois filhos, e um tema interessante para filmes infantis. O cerne da ideia em dar esse reboot dos Addams está bem amarrado. Os pequenos arcos dos personagens na família são ricos, meigos e universais. Muito mais cativantes e envolventes do que o plot maior que deveria carregar o filme.

Percebem a encruzilhada que foi Família Addams? O filme é cheio de boas ideias, é contemporâneo, acerta no tom de cada personagem, constrói momentos incríveis, tem uma mensagem bem legal e deixa a gente sorrindo o tempo inteiro, mas a história geral é pobre. Eu adorei, sai do cinema cheia de amor no coração, mas olhando analiticamente, foi mais pela identificação e carinho com esse universo do que propriamente pela aventura da família. Acredito que funcionaria melhor como série, com tempo para conhecermos os personagens secundários – que tem uma apresentação ruim, mais um fanservice para quem os conhece – e com aventuras simples que focam na relação entre a família e o mundo exterior.

Vale apena assistir? Meu voto é sim, é gostosinho, divertido e quentinho no coração. Dosando as expectativas em assistir algo cheio de personalidade, mas simplista, a experiência é muito positiva. A resenha contraditória traduz bom os sentimentos diante de Família Addams. Mas prometo interpretações musicais excelentes, como o clássico do R.E.M, trocadilhos espinhosos e referências excelentes a filmes de terror como It: A Coisa. O alicerce da cultura trevosa tem uma boa atualização, só precisa caprichar mais na próxima aventura, prometida para 2021.

PS: Só eu achei o assistente da Margaux A CARA do personagem de Super Drags? Encarei como uma homenagem à finada animação.

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2 respostas para “Família Addams é sobre o horror de ser padrão”

  1. […] Ainda assim, colocar todos os personagens pertencentes aos moldes tradicionais como vilões não é um aspecto arbitrário. Mesmo que não seja falado de forma explícita, o filme gera reflexão sobre problemas sociais, como a ganância e a concepção de que os fins justificam os meios, o que cria uma certa exaltação a excentricidade e a quebra de padrões. […]

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