Esse é o ano da Ms. Marvel! A heroína anunciou sua série própria no Disney+ e, mais recentemente, se tornou a sexta personagem disponível para jogar no novo jogo Marvel’s Avengers. Criada em 2014 por G. Willow Wilson e Sana Amanat, a primeira HQ solo de Kamala Khan já chegou ganhando prêmio Hugo e sendo uma das publicações atuais mais lidas da Marvel. Tudo merecido, a história da Ms. Marvel, uma das protagonistas dessa nova era da editora, é perfeita e eu posso provar!
Kamala Khan é uma jovem muçulmana de família paquistanesa que nasceu e vive na cidade de Nova Jersey. Na tentativa de se enturmar com os colegas da escola, ela vai escondida a uma das clássicas festas americanas, localizada na beira de um rio. Coisas misteriosas acontecem e a festa é tomada por uma neblina, que deixa Kamala inconsciente e a transforma em inumana – significa que ela ganhou poderes. Durante o primeiro encadernado intitulado Nada Normal, acompanhamos o início dessa trajetória da super-heroína aprendendo a lidar com seus novos poderes metamorfos e a vida de adolescente descendente de imigrantes.
Por ser uma heroína teen, Ms. Marvel tem toda essa vibes Homem-Aranha: adolescente na cidade grande com problemas atuais e relacionáveis cuja plot gira máxima “com grandes poderes vem grandes responsabilidades” – ou seja, amamos, é incrível e especial. O maior diferencial de Kamala é a atualização que ela traz do assunto, se tornando um ícone da representação de toda uma geração: os millennials (geração Y, pessoal de meados dos anos 1980 até 1996, mais ou menos – sinto muito, você deve ser um millennial como eu).
Essa representação é o maior superpoder da personagem: mulher, muçulmana, paquistanesa, nerd/geek. Ela simboliza toda a mudança na mídia, tanto no âmbito da identidade cultural como no empoderamento de gêneros. A necessidade e demanda por mudanças nos padrões clássicos da representatividade é, talvez, a maior pauta dos millennials, queremos diversidade. Chegamos num ponto que questionamos as representações tradicionais de identidade, classe e educação, não reconhecendo mais o padrão imposto por todos os meios e veículos. A geração Y se levanta contra a voz única do homem branco heterossexual, e Ms. Marvel simboliza toda essa mudança, e ainda encontra muita resistência.
No começo, Kamala é uma nerd muito fã dos Vingadores (que existem real no mundo dela), a sua favorita é Capitã Marvel (não teria como ser diferente) e ela escreve fanfics sobre na internet. Ela não tem vergonha de expressar seu gosto pelos Avengers ou pelas coisas nerd que a rodeiam, vivemos uma geração na qual ler quadrinhos não é mais motivo de deboche, e a personagem abraça essa nova perspectiva. Não só isso, ela representa as garotas que são fãs de HQ, muito tempo tidas como “coisas de garotos” e resumido papeis femininos como donzelas peitudas em perigo. Kamala é a geração de garotas que consomem quadrinhos de super-herói.
Além disso, o fato de ser descendente direta de paquistaneses e muçulmana, que frequenta a mesquita e tudo, por si só já é uma bela representação, mas a garota é, também, americana e esse conflito cultural é um dos principais plot das suas histórias. Quando, na adolescência, não precisa de muito para nos sentirmos excluídos, Kamala vive um conflito de identidade imenso – ela está tentando descobrir quem é e quem desejar ser na vida. Kamala vive entre dois mundos culturalmente diferentes e não sente que pertence a nenhum. Apesar de amar muito sua família, não é tão conectada e devota a religião como seu irmão mais velho, e tudo que quer é se encaixar no universo adolescente da escola.
Todo esse conflito é transposto metaforicamente nos seus poderes – ela pode mudar o seu corpo e se parecer com qualquer pessoa (mas calma, não é tipo Mística, é diferente). Quando adquire os poderes, a primeira coisa que faz é se transformar em Carol Denvers (a.k.a. Capitã Marvel época que era Ms. Marvel, confuso, eu sei). Com essa nova, mas já ocupada, identidade, ela decide combater o crime e acredita que a nova aparência vai fazer todas as crises de identidade irem embora, mas logo descobre que não é bem assim.
Assumir a identidade de outra pessoa é exaustivo, como a própria personagem diz. Nos combates, ela não é tão efetiva quando está na forma de Denvers, e a autoestima também não melhorou – afinal, era outra pessoa que salvara o dia, não ela. A questão é, mesmo quando muda sua aparência, ela não pode apagar sua história e identidade, por dentro, ainda é Kamala, que estava tentando ser alguém que não é. Quando nossa amada percebe isso, temos o primeiro ponto de amadurecimento: se esconder atrás de uma aparência falsa não dá a ela o empoderamento que queria. Se ela quer fazer a diferença, têm fazer sendo ela mesma!
“You are seeing what you need to see. You stand at a crossroads. You thought that if you disobeyed your parents — your culture, your religion — your classmates would accept you. What happened instead?” Denvers, Carol.
Aceitar o seu lado muçulmano faz parte do crescimento da personagem, que aprende que é uma mistura única de duas culturas, transformando-a num modelo para os jovens leitores. O seu ~outfit de heroína é uma mistura dos clássicos heróis norte-americanos com acréscimos da sua cultura paquistanesa como o lenço que utiliza, um mix, como ela. Traje brilhantemente pensado por Adrian Alphona, ilustrador de Nada Normal. Como millennial que busca atualização, a roupa também representa uma mistura do velho com o novo, das antigas histórias da personagem com a nova, protagonizada por Kamala. Ela se transforma na nova versão da sua heroína favorita, e isso é tão especial!!
Concluímos, com isso, que os poderes de transformação física de Kamala são uma representação externa e visual para as questões que ela luta internamente – não é aleatório! As consequências de ser outra pessoa também são sentidas pela personagem, que não consegue se regenerar (bem Wolverine mesmo) quando transforma seu corpo em outra pessoa – é doloroso assumir uma personalidade que não a sua. Todo o roteiro e construção de personagem extrapolam os estereótipos das histórias de super-heróis, nada é raso e à toa, e Kamala tem um jeito especial de falar com seu público.
A religião é parte importante da identidade de Kamala e da conexão com sua família. Entre os alívios cômicos, idas as mesquitas e tradições familiares, percebemos a influência do Alcorão nas suas decisões e como ele e seu pai funcionam como uma bússola moral. Os ensinamentos do livro sagrado islâmico dão força interior para personagem, e, logo no início, temos a bonita passagem “quem salva a vida de uma pessoa, é como se tivesse salvo toda a humanidade” que marca uma decisão importante da personagem.
Toda essa jornada de aceitação da Kamala dialoga com os millennials e o momento atual do mundo. A heroína entra como um importante símbolo da aceitação das diferenças, do abraço e apreciação a diversidade, ao invés de escondê-la e condená-la. O quadrinho mostra que tentar rejeitar qualquer cultura e focar na narrativa única é roubar o significado de humanidade e de toda a pluralidade que acompanha nossa espécie e nos torna diferente dos demais animais.
Além de tudo isso, a personagem tem seu carisma próprio: Kamala é gente como a gente. Quando ingressa nesse universo de super-heróis ela fica um misto de “morrendo de medo” e “meu deus um sonho se realizou”. As cenas dela descobrindo seus poderes e querendo sair em suas primeiras missões de heroína são excelentes, e é como se estivéssemos com ela em cada situação. Ela não é blasé diante da situação, sua arrogância a coloca em problemas, e, quando conhece seus heróis favoritos, ativa o modo fangirl. É hilário e muito fofo.
Kamala representa, também, a luta pela igualdade de gênero. Num universo extremamente machista e dominado por homens, Kamala surge como força motriz das meninas que amam quadrinhos: não é sexualizada, foi criada por mulheres muçulmanas, tem conflitos interessantes e arcos bem definidos. Ela rompe com o protagonismo masculino, e até com o protagonismo de mulheres brancas, trazendo à luz a complexidade das identidades e das lutas por espaço e igualdade. Kamala é incrível porque quebra vários padrões, provoca discussões sobre gênero, identidade, xenofobia, crise dos millennials, destruição global da geração anterior e dates.
Em resumo: as HQs de Kamala Khan são a personificação da próxima geração, alguém que representa os tempos de mudança em relação a igualdade e diversidade, enquanto luta por um futuro melhor para uma geração dominada pela desesperança. Ms. Marvel é o grito de uma geração que não cabe mais dentro dos limites e restrições, e está em busca de um mundo mais heterogêneo e justo.
Um quadrinho adolescente de herói da Marvel é sobre tudo isso? É sim, além de ser um excelente entretenimento! A linguagem é jovem, cheia de referências de coisas atuais e, em nenhum momento, se torna palestrinha. Se homem-aranha sempre foi meu herói favorito, agora eu posso dizer que é Ms. Marvel (e os dois formam uma dupla chamada Team-Up, tem quadrinhos, preciso demais).
Aqui no Brasil são 8 compilados publicados (se não me engano) e outras revistas mais que ela faz participação, ou seja, podemos amar muito Kamala Khan – eu ainda não li quase nenhuma, Panini me nota eu imploro. Você pode acompanha-la também na animação Marvel Rising, formada por times de garotas incríveis como Garota Esquilo, Patriota, Spider Gwen e tal. E, em breve, poderá acompanhar a série live-action de Ms. Marvel (sei lá, breve tipo 2021). A nova era de heroínas chegou e eu não poderia estar mais feliz!
Uma resposta para “Ms Marvel ilustra a importância da nova geração de heróis (e heroínas)”
Ms. Marvel já minha nova heroína favorita, só por ser “gente como a gente”. Que incrível! Fiquei com vontade de ler pela sua crítica 🙂
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