Coringa está sendo mais polêmico do que o esperado. O filme de origem do maior vilão do Batman não é apenas mais uma obra de super-heroi, ele é um ensaio social. Todd Phillips e Joaquin Phoenix optaram por se afastar do tema quadrinhos, de forma que Coringa é mais próximo de Taxi Driver e David Fincher. Fazer uma análise simplista é, sim, um caminho perigoso, pois as complexidades trabalhadas precisam ser debatidas.
Quanto mais eu penso sobre Joker, mais eu gosto do filme e mais entendo os problemas apontados pela audiência – contraditório, eu sei. Arthur Fleck é vítima de um sistema falho: com uma doença mental, tem dificuldades em achar emprego, sofre bullying no trabalho, cuida da mãe doente e mora num cortiço, ainda assim, tenta perseguir seu sonho de ser comediante. O filme exige da audiência empatia, e ser empata para com Arthur não significa concordar com suas óbvias escolhas erradas, mas acompanhar o raciocínio que o levou a toma-las.
Para mim, o maior mérito de Joker é a forma complexa e irônica que fala sobre política. Arthur vive numa Gotham (Nova York prfvr) colapsada: greve de lixeiros, cidade imunda, violenta, sem recursos, sem emprego. A desigualdade social é gritante e, enquanto ele é agredido na rua e tem o tratamento médico suspenso por falta de recursos públicos, um cara rico e poderoso aparece na TV com um discurso meritocrático revoltante. Os dois habitam a mesma cidade, mas parecem ser de mundos diferentes. A fotografia faz um excelente trabalho em retratar isso: o tom amarelado, de sujo, encardido, que domina as cenas, o sombrio de Arthur contraposto com a luz clara e límpida dos Waynes.
Arthur nasceu em uma família desestruturada, nunca conhece o pai, cuida da mãe doente, que é cheia de segredos, e basicamente não tem amigos. A falta de estabilidade e apoio (já que a mãe não acredita no seu sonho de ser comediante) junto com a depressão profunda sem tratamento que vive o personagem despertam o pior nele. O filme retrata a forma negligente que a sociedade encara transtornos mentais de qualquer natureza. Arthur é zoado no trabalho, rejeitado por todos, tem severas dificuldades de convívio e nenhum apoio. Somado a isso, o filme desenrola toda a confusão referente a seu passado. Arthur não tem onde se apoiar. E é nesse ponto que o filme exige discernimento e empatia do público.
A empatia por Arthur machuca: o vazio e o desespero que o personagem sente preenche o expectador, e quem sofre de depressão se enxerga nele – a falta de sentido na vida. O filme é vazio, pois o personagem se sente assim. As cenas na escadaria são, no mínimo, perfeitas metáforas do roteiro para a jornada do Coringa. Todo dia, na volta para a casa, Arthur sobe a IMENSA escadaria, para, no dia seguinte, ver aquele esforço todo caindo de volta ao ponto zero. Até que ele desce, e pisa no sistema!
O roteiro e a direção de Todd Phillips são cheios de entrelinhas como essa, tornando cada cena riquíssima para a construção do personagem, ou, sua desconstrução como é o caso. A trilha sonora carrega ainda mais toda a atmosfera, e conforme Arthur se torna Coringa, a trilha pesa, aumenta, e a câmera se endireita, mas nós nos sentimos destruídos. O filme, como todas histórias de Batman, bate muito na tecla do “dia ruim”, mas, acredito que o “dia ruim” é a gota d’água, é o empurrão que define se a pessoa irá cruzar a linha que não tem mais volta. Arthur cruza essa linha e isso o empodera, mas isso também deveria ser o que rompe com nossa empatia.
O filme falha, sim, em mostrar consequências das escolhas erradas do personagem. Para as pessoas de periferias e ignoradas pelo sistema, pode, sim, soar válidas suas ações. Nesse ponto o filme foca tanto em construir o mito do Coringa, que funciona como um símbolo para parcela da população, que esquece que estamos falando de um sociopata. Não acredito em julgamentos morais explícitos em histórias, mas nos tempos de violência que vivemos, acho importante traçar de forma clara e objetiva esse conceito tão básico de certo e errado.
O que eu não gostei tem mais a ver com detalhes que, aparentemente, o universo DC achou que deveriam ser inclusos: Bruce Wayne. As aparições do Batman criança são totalmente dispensáveis e, para mim, agregam nada à história. Além disso, acredito que o problema real do filme resida nos cinco minutos finais – um desastre que poderia ser evitado e, de verdade, funcionaria melhor como a história de origem do Coringa que conhecemos, afastando um pouco da nossa realidade.
Joaquim Phoenix é onipresente no longa, não existe uma cena sequer que não tenha sua presença e, falar que ele foi espetacular é chover no molhado! O trabalho corporal que o ator entrega ao personagem é brilhante, as cenas dele dançando são tudo para mim. A risada macabra dá agonia, e a maior parte desse sentimento se dá por não sabermos se ele está, de fato, rindo, ou chorando de desespero. Por fim, a transformação de Arthur em Joker é fantástica, a autoconfiança demonstrada na postura e na dança do personagem conforme ele se entrega a loucura são perfeitas.
Arthur dança quando se sente “feliz”, livre, satisfeito com o momento. Podemos ver que nos momentos que é oprimido socialmente, o personagem anda curvado, tenso, torto, quase tentando se esconder dentro de si mesmo. Porém, quando sente alívio, ele dança, se alonga, domina a tela e os espaços – mesmo que a natureza de tais sentimentos sejam horríveis.
Exaltado o personagem (tá feliz, Joaquin?), eu acredito que ele poderia ter dividido um pouco mais a tela – senti falta da mãe dele, por exemplo, outra perspectiva. Não é porque o filme é origem do fulano que ele precisa de 100% das cenas! No entanto, discordo profundamente das pessoas que “estragaram meu personagem” e “esse não é o coringa”. Eu acho muito mais rico para qualquer tipo de história um personagem humano que tenha uma trajetória cheia de altos e baixos do que, simplesmente, chegar e dizer “vish caiu num tanque de produto químico e ficou louco”. No final do filme o que temos é o Coringa, com seu carisma doentio, sua imprevisibilidade aterrorizante, sua plenitude violenta. Sempre odiei vilão que é só doido, e ele sai desse lugar.
As referências a Taxi Driver são típicas de fangirl, o que amo, pois excelente filme também, assistam. Achei genial como Todd Phillips trouxe De Niro no outro lado da moeda, como uma pessoa que faz parte do sistema. Esse contraponto com seu personagem no longa de Scorsese é mais do que uma brincadeira, é uma forma de contrapor os caminhos e escolhas sociais e pessoais. Além desses dois, o filme tem 30 segundos com Marc Maron e o meu eu fã de glow interior surtou!!
Joker entrega estritamente o que promete no trailer: a história da degradação de um ser humano vítima do sistema falho. Ele critica de forma enfática a ausência do Estado nas periferias, a negligencia e descaso com pessoas com transtornos mentais, a facilidade do porte de armas, e um empoderamento perigoso que é, sim, capaz de corromper muita gente. Gosto de como trabalham o conceito de criar um culpado, no filme, os ricos, e destinar ódio e culpa a um grupo social – muito congruente com o momento atual. O filme é 16+ por um motivo: precisa de maturidade (que nem adultos às vezes tem). É sim violento, mas não tanto quanto imaginei, e acredito que a violência emocional pesa muito mais. Se encaixa como perfeita origem do Coringa já maduro e consolidado de Heath Ledger.
O tipo de filme perturbador que eu gosto! Cinematograficamente belíssimo. Gostei do roteiro, com leves ressalvas, e a direção de Todd Phillips se encaixou muito bem, pecando, algumas vezes, pelo excesso. É um filme denso e inteligente em toda a sua forma, repleto de detalhes e entrelinhas, o que o distancia ainda mais do universo de herois no cinema que estamos acostumados. Coringa nasce como símbolo, espreme a fantasia até sobrar somente a realidade, e mostra como no fundo, histórias em quadrinhos são sobre nós – como a sociedade cria seus vilões, e as escolhas erradas que pessoas vulneráveis tomam. Enfatizo, por fim, ele é um sociopata e sentir empatia por Arthur não quer dizer que concorde em nada com as suas atitudes.
Ou você morre como um herói ou vive o bastante para se tornar um vilão!
Vídeos legais que ajudaram a consolidar minha opinião:
CORINGA: UM FILME POLÊMICO? ANÁLISE E TEORIAS
CORINGA E SUA INFLUÊNCIA NA PERIFERIA