Coraline ilustra realidade sombria de crianças negligenciadas

Acredito que todos concordamos quando digo que Coraline e o Mundo Secreto é um filme perturbador. Porém, e se eu te disser que não são aqueles olhos de botões e mãos de agulhas que deixam tudo assustador? A verdade é que Coraline é um filme sobre abuso, com mensagens para pais e filhos. Uma obra que, sem dúvidas, exige maturidade dos expectadores e, por isso, não é indicada para menores de dez anos.

Adaptada do livro homônimo de Neil Gaiman, Coraline conta a história de uma garotinha que acaba de se mudar para uma casa enorme e velha com seus pais, que não lhe dão qualquer atenção. Sozinha, a garota se sente invisível na própria família, da qual não recebe afeto, sempre sendo tratada com indiferença pela dura e ocupada mãe, e comendo as gororobas do atrapalhado pai. Os dois são viciados em trabalho e passam o dia inteiro em seus respectivos escritórios, dentro de casa. Até o dia que garota encontra um portal dentro de um cômodo vazio que a leva direto para o espelho da sua realidade. Com Outra Mãe e Outro Pai atenciosos, uma casa colorida e cheia de vida.

(O texto a seguir contém spoilers do filme. Como não li o livro, não tenho como comparar ou falar sobre, fica para outro post)

Qualquer semelhança com Alice Através do Espelho não é mera coincidência, e assim como as clássicas aventuras da personagem de Lewis Carroll, Coraline vai descobrir que o mundo encantador não é tão divertido e ideal assim. Neil Gaiman escreveu um conto de fadas moderno, e, para isso foi fundo na origem de tais histórias, como Irmãos Grimm. As referências e formatos de Coraline assustam pois não seguem o molde das típicas histórias romantizadas da Disney. O filme não é uma história de aventura, mas sim de horror.

A primeira camada do filme, e a mais leve, é a constatação de que o perfeito não existe. A dimensão espelhada que Coraline visita tão contente se mostra um pesadelo, uma ilusão. A Outra Mãe, que a espiona através da boneca (quase voodoo) da garota, descobre seus desejos e anseios e por isso é tão eficiente em satisfazê-los. A perfeição é uma isca para a garota, que logo se quebra e revela sua verdadeira identidade. As excêntricas vizinhas de baixo insistem em chama-la de Caroline, que é a forma comum do nome, o perfeito, porém está errado, esse não é o nome da garota. O erro proposital no nome da protagonista já sugere ao expectador que perfeição não existe, e as coisas nem sempre seguem sua conformidade.

Essa vontade do perfeito de Coraline, na verdade, é que a leva para o perigo. O perfeito é perigoso.

O filme vai no cerne dos desejos universais da criança: ser o centro do mundo – ter suas vontades satisfeitas. Para seduzir Coraline, o Outro Pai faz um jardim com formato da cabeça da garota, uma homenagem, admiração pela filha, dando a atenção e o valor que ela nunca teve em casa.

A Outra Mãe, seguindo os nada sutis moldes da Bruxa de João e Maria, conquista a menina pelo estômago. Nosso inconsciente associa comida a zelo, atenção, conforto – Coraline não tem comida gostosa em casa, então a Outra Mãe cozinha tudo que a garota tem vontade de comer. O clássico “conquistar pela barriga”, acolhendo-a, mas, na verdade sendo uma isca. E aqui começa o lado mais obscuro da história.

coraline e o mundo secreto analise

Enquanto mimam à exaustão a garota, os olhos mais atentos percebem que há algo de errado. Cega pelo desejo de ser notada, Coraline ignora os claros sinais de perigo. A música “Other Fathers Song” descreve para garota o que a aguarda, com letras nada sutis sobre as intenções da Outra Mãe. Esta se aproveita dos momentos de alegria e satisfação da garota e começa a fazer sua cabeça contra seus pais verdadeiros, com falas bem pesadas e esquisitas que a garota ignora, em prol do seu mundo ideal e confortável.

A marca registrada de Coraline, os famosos olhos de botões, carregam o cerne de toda a história, e várias interpretações e camadas.

Vamos começar com o clichê “os olhos são a janela da alma”. A Outra Mãe se alimenta dos olhos de suas vítimas, em especial, crianças, ou seja, ela se alimenta das almas delas. É comum entre vítimas de abuso o relato de que o abusador roubou sua alma, sua inocência, uma parte de quem eram. A Outra Mãe é uma abusadora, predadora de crianças, que as atrai com um mundo ideal, para violenta-las, e essa mutilação é figurativa na forma dos olhos.

Quando o fato atinge Coraline, ela encontra as crianças fantasmas. Uma delas tem um olho de botão e o outro tapado com a mão, pedindo a ajuda da protagonista para localizá-lo. Isso sugere que a vítima está dividida entre as manipulações do abusador e a recuperação da autonomia. Os olhos de botão transformam as pessoas em bonecos, fantoches do abusador. Dado ao seu caráter manipulador, a Outra Mãe controla as crianças, pois tirou delas sua autoestima, capacidade de confiança no outro, e as isolou nesse mundo sombrio. Ela não deixa as pessoas escaparem do mundo espelhado, pois sua influência só é efetiva na realidade que ela criou.

coraline outra mãe

A ausência dos olhos nos habitantes do outro mundo são um obstáculo para Coraline, pois dificultam a garota a perceber o perigo que ali reside. Ainda no clichê, os olhos revelam muito sobre as emoções e sentimentos, e, sem eles, ela não consegue ler de verdade aquelas pessoas. Isso fica claro com o Outro Wybie, que está sofrendo sendo forçado a enganá-la.

Wybie é o personagem que menos consigo interpretar, mas se pudesse dar um palpite, ele seria o contraponto de todos com olhos de botões. No início, Coraline não gosta dele e é bem hostil a sua insistência em serem amigos. Acredito que a repulsa da garota se deve ao fato de ele refletir a sua história: em momento algum Wybie fala sobre seus pais, o que nos faz pensar onde eles estão, o que aconteceu – ou, como o filme retrata, são terrivelmente negligentes e ausentes. Wybie fala apenas da avó, mas como proprietária do imóvel, não com carinho ou atenção. Por fim, o fato de ter sido ele quem deu a boneca a Coraline e é manipulado pela Outra Mãe sugere que ele é usado, também, para sondar crianças ao redor e mora, na verdade, com abusadores que, não necessariamente abusaram dele, mas o usam em seus ataques, sem que ele de fato saiba o que está acontecendo. O que, em todo caso, é uma hipótese BEM triste.

Coraline é um filme denso e cheio de camadas. Ele alerta as crianças a sempre desconfiarem da gentileza de estranhos, que podem estar recheadas de más intenções. O final “feliz” não elimina a mensagem do filme e, o essencial, assusta as crianças porque a realidade é assustadora. Neil Gaiman acredita que não devemos poupar as crianças das obscuridades do mundo, de como ele pode ser sombrio e com pessoas más, e eu concordo. Não acho que devemos isolar as crianças num mundo ideal e perfeito, pois essa não é a realidade. Criar essa ilusão é perigoso, como vemos em Coraline, e gera frustração, as coisas nem sempre são como a gente espera mesmo.

coraline critica

Para os mais velhos, o filme alerta dos perigos da negligencia parental. Enquanto os pais ignoram Coraline, existem pessoas mal-intencionadas se aproveitando dessa vulnerabilidade, e eles nem se quer percebem. Coraline é um filme sombrio pois precisa ser, e faz o melhor uso possível da fantasia: com alegorias, passa uma mensagem difícil. A primeira cena do filme é um prelúdio do que nos aguarda e, para os olhos mais atentos, resume toda a temática do abuso que será abordada. A animação em stop-motion, brilhantemente desenvolvida por Henry Selick (pupilo de Tim Burton), dá a sensação de estarmos diante de um livro pop-up, o que acrescenta a ideia de conto de fadas e dita todo o tom sombrio da narrativa.

Por cada detalhe Coraline é um dos meus filmes preferidos, e, além desses significados, existem várias outras camadas e objetos de análise e interpretação. O filme é fonte inesgotável de simbologias, como o Gato que não citei aqui, a origem de Beltram, nome da Outra Mãe, os insetos e os vizinhos, por exemplo (ai muita coisa!!). Neil Gaiman né, mores, suas histórias sempre são carregadas de mensagens. E, como o próprio diz sobre essa obra: “Sometimes the people who love you may not pay you all the attention you need, and sometimes the people who do pay you the attention may not love you in the healthiest way”.

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7 respostas para “Coraline ilustra realidade sombria de crianças negligenciadas”

  1. Ola! Eu amo o livro Coraline, um dos meus preferidos. Nao gostei tanto do filme e achei muito diferente, com muitas adaptações. Inclusive esse personagem do menino nao existe no livro (lembrei disso ao ler que foi o que menos você conseguiu interpretar- acredito que criaram para facilitar o dialogo, ja que em um livro voce tem melhor acesso aos pensamentos da protagnosta). Sugiro a leitura para quem ainda não o fez!

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  2. Ola! Eu amo o livro Coraline, um dos meus preferidos. Nao gostei tanto do filme e achei muito diferente, com muitas adaptações. Inclusive esse personagem do menino nao existe no livro (lembrei disso ao ler que foi o que menos você conseguiu interpretar- acredito que criaram para facilitar o dialogo, ja que em um livro voce tem melhor acesso aos pensamentos da protagnosta). Sugiro a leitura para quem ainda não o fez!

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    • Oii Ana!
      Sim, eu tempo depois eu li o livro e realmente é bem diferente. Comigo a experiência foi diferente, acho que porque eu já estava acostumada com a adaptação, então eu tinha um apego maior a ela. Eu acho que a mensagem geral é a mesma, com certeza o filme interpretou e criou mais coisas a sua maneira para a história funcionar mais no audiovisual, já que como você disse, no livro a gente fica mais imerso na própria personagem ne

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  3. Sua interpretação foi muito clara em todos os detalhes se puder fale mais sobre ox outros personagens, por favor.

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