A visibilidade LGBT é recente, por muito tempo esse grupo foi excluído dos produtos de entretenimento e, só de poucos anos para cá, começou a ser representado. Porém, a desejada representação é, em grande parte das vezes, um truque, um “mal entendido” ou apenas insinuação. Isso é conhecimento na comunidade como Queerbaiting, que, a princípio parece inofensivo e até uma frescura, mas, na real, é ofensivo e sintomático de uma sociedade que ainda apresenta uma resistência horrorosa com essas pessoas.
Queerbaiting é a junção de Queer e do verbo To Bait, do inglês. Queer é, no geral, um termo que abrange todas as sexualidade e identidades de gênero que fogem do padrão cis-heteronormativo, já baiting pode ser traduzido como isca. Dessa forma, Queerbaiting é um artificio narrativo usado nas história para atrair, seduzir pessoas da comunidade LGBT+ a consumir dado produto de entretenimento com a promessa de um personagem do vale que nunca é concretizada. Essas histórias estão frequentemente sugerindo que personagens importantes tenham, principalmente, interesses homoafetivos, mas isso nunca é desenvolvido ou confirmado.
Essa jogada de marketing tem como objetivo conquistar o público queer, mas sem perder a grande audiência representada pelos heteronormativos, o que, no final do dia, é uma grande homofobia – o hetero vai parar de assistir porque tem personagens LGBT? Então ele é preconceituoso ao extremo. As séries e filmes comumente praticam queerbaiting para aumentar o orçamento, alimentando uma falsa esperança de que essa comunidade se verá representada nas telas. Brincar conscientemente com os sentimentos de uma população vulnerável, fragilizada, que anseia por essa representatividade é cruel e desonesto.
A manipulação psicológica da comunidade LGBT é delicada e bate forte na forma como relacionamentos são apresentados e induzidos pelos produtos audiovisuais. Pessoas heterossexuais apresentam dificuldade em identificar casos de queerbaiting devido à falta de experiência no assunto. Como existe um padrão de relacionamentos heteros, desde sempre somos induzidos a enxergar apenas romance entre homem e mulher – o que não acontece com pessoas que já tiveram uma experiência diferente. Por isso, muitos podem interpretar como uma frescura da comunidade LGBT e não enxergar o que, maliciosamente, foi introduzido pela produção da série para flertar com esse público, mas ficar distante o suficiente para não se comprometer com os “tradicionais”.
Um sintoma disso aconteceu com uma das minhas séries preferidas da vida: Sherlock. O queerbaiting é escancarado e o Showrunner, Steven Moffat, se mostrou babaca quando abordado sobre o assunto. Apesar de negar de pé junto a possibilidade de romance entre Sherlock (Benedict Cumberbatch) e John Watson (Martin Freeman), a série entrega exaustivamente cenas que levam até os mais céticos questionarem a natureza do relacionamento dos dois. Ser acordada desse mal de uma série tão boa e querida foi doloroso, mas um processo necessário. Existem vários momentos que o relacionamento deles é questionado por terceiros, olhares e diálogos cheios de ambiguidades descaradas, e o próprio roteiro faz brincadeiras entorno disso, o que é outro problema.
Brincar com o queerbaiting é uma continuação no desserviços da sub-representação LGBT. Quando se naturaliza essa prática, e lida com tudo como se fosse uma brincadeira, não se está apenas excluindo o público queer, mas também debochando e jogando com a personalidade deles, brincando com quem são e com o que representam. O caso Sherlock é ainda mais grave pois as insinuações são explícitas, viáveis na narrativa, mas o showrunner fez questão de negar e inserir personalidades mulheres (mal desenvolvidas) unicamente para afirmar a heterossexualidade dos personagens.
Essa necessidade em negar um possível relacionamento homossexual é uma receita para o desastre. Existem casos em que se descaracteriza um personagem (aconteceu em Sherlock), inclusive o inserindo até em relacionamentos abusivos e mal construídos, feitos apenas para negar ao público LGBT um casal e se sair bem com a audiência tradicional. Queerbaiting sustenta uma narrativa que nega a representatividade, e segue anulando o público LGBT.
Importante entender nesse fenômeno é que queerbaiting não se trata de ships não realizados. O público tem, sim, um prazer em criar casais e torcer por eles e, muitas vezes, esses casais são LGBT – e ter o seu ship frustrado faz parte do show. Porém, o queerbaiting acontece quando dois personagens visivelmente formariam um casal, tem sentido na história, existe um flerte, e, principalmente, se um deles fosse substituído por alguém do sexo oposto, eles, com certeza, teriam uma trama amorosa. Essa troca de olhares, essa linguagem ambígua, essas piadas, seriam facilmente interpretadas como relacionamento amoroso se fossem feitos por homem e mulher? Então é queerbaiting.
Outro comportamento nocivo que busca alimentar falsas esperanças dos LGBTs são as informações divulgadas fora da tela. Em séries, principalmente, é muito comum atores e produtores deixarem subentendido que tal personagem não é hetero, ou dois personagens são mais que amigos, porém, na tela, isso nunca é confirmado. O que é dito fora do roteiro da série não interessa, a representatividade acontece na história, não nas hipóteses. A rainha disso é J.K. Rowling, fonte de grande desilusão ultimamente. A autora sabe que Harry Potter não tem representatividade alguma (de nada), mas vira e mexe ela surge polemizando revelando que personagem tal, na verdade, tem uma vida secreta na cabeça dela. O caso emblemático é Dumbledore.
Há alguns anos, a rainha da fantasia juvenil veio a público afirmar que o diretor de Hogwarts é homossexual, e teve um relacionamento amoroso com Grindelwald. Todos ficamos extasiados com a novidade e, em euforia quando foi divulgado que a saga Animais Fantásticos seria, na verdade, sobre essa situação. Porém, no horrível Crimes de Grindelwald, temos um queerbaiting gritante, e uma falta de coragem e vergonha na cara em assumir o relacionamento dos dois. Não basta falar, não basta insinuar com abraços e meias palavras, a gente precisa ver. Foi uma enorme decepção, e uma evidencia de que, tudo que ela queria, era incluir o enorme público LGBT que cresceu com Harry Potter, mas sem comprometer a família tradicional, ser Family friendly.
Esse não é o único caso, mas, antes disso, tivemos o bromance Alvo e Scorpius, em a Criança Amaldiçoada. Talvez a única coisa boa de toda aquela catástrofe de livro, os dois surgiram como uma possibilidade de alimentar uma das fanfics mais famosas do universo, o relacionamento de Harry e Draco. Os dois eram, definitivamente, um casal, e, mais do que isso, a oportunidade de JK e redimir com a comunidade e entregar a representatividade que ficava remendando por anos. Isso aconteceu? Não! Nos últimos momentos negaram a possível homossexualidade deles com par mulheres para o baile (a do Scorpius era uma otária que só o mal tratava). Nesse contexto entra Carry On (resenha aqui), livro de Rainbow Rowell que nasce como uma fanfic Draco+Harry, mas tem a coragem, carisma e representatividade incríveis que J.K. nunca levou a frente.
Com relacionamentos lésbicos, os casos são diferentes. Comumente, temos histórias protagonizada por meninas, mas que contam com roteiristas homens – que não fazem a lição de casa. Isso gera uma representação irreal de amizade entre mulheres, o que leva a um queerbaiting não tão intencional e malicioso. Os homens partem de um ideal da amizade feminina na qual elas não se importam em serem julgadas lésbicas (o que não é verdade); que elas se pegam por diversão, mas são heteros (o que é um fetichismo barato), e que elas tem quase um relacionamento amoroso de tão intenso e íntimo (o que gera um ruído de mensagem e queerbaiting). Isso aconteceu em Glee, na primeira temporada, com o conturbado relacionamento de Santana e Brittany, que, apenas depois de pesadas críticas da comunidade, Ryan Murphy corrigiu a narrativa e construiu um relacionamento. Esse efeito de “amigas heteros que se pegam” anulam as lésbicas, é uma narrativa muito homofobica, que nega as mulheres homossexuais a ideia de romance e trata tudo com erotismo vago.
Desde a utilização do termo discutido, dado entre 2011/2012, muita coisa mudou, e melhorou, e queerbaiting talvez esteja caindo em desuso. No entanto, o que pode ser vendido como mais LGBTs na TV, também pode ser interpretado como um Queerbaiting 2.0. Temos personagens mais assumidos, o que é ótimo, só que não desvia do interesse econômico da indústria do entretenimento. Se antes não existiam personagens assumidamente LGBT, agora eles estão lá pois, representatividade dá dinheiro, mas não são, ainda adequadamente explorados.
Grande parte da crítica em torno de Riverdale (além do roteiro ruim), foi o subdesenvolvimento dos personagens LGBT. Kevin não tem uma história definida, e tudo em torno dele é sobre sua sexualidade, ou orelha da Betty. Já o casal Choni (Cheryl e Toni) tiveram várias cenas excluídas na segunda temporada, zero foco no relacionamento das duas, que se baseava em palavras de conforto e abraços. Enquanto Archie e Verônica estavam transando todos episódios, a Choni até beijos foram negados a maior parte do tempo.
Colocar casais LGBT mas não apresentarem seu relacionamento como algo natural, da forma como é o heterossexual é o novo problema da comunidade. Frequentemente temos casais que se abraçam, dão beijo na bochecha, dormem longe na cama, mas são apaixonados – comportamento destoante do heterossexual. Exemplo disso é Modern Family, que é super legal pela representatividade e diversidade trazida, mas que o relacionamento de Cameron e Mitchell é apresentado de forma bem diferente dos demais heterossexuais. Falta essa naturalidade, e fica evidente o desconforto, ou até ignorância, dos produtores em relação a essa representatividade.
Outro ponto de atenção com personagens LGBT é o excessivo uso de estereótipos ofensivos e irreais. O clássico cabeleireiro de novela, o gay alívio cômico, melhor amigo do protagonista, enfim, arquétipos rasos, não desenvolvidos, no qual ou sua sexualidade é a única questão, ou ela nunca é uma questão. Em queerbaiting 2.0 a promessa saiu de um personagem LGBT para um personagem LGBT interessante – que não chega a acontecer.
Riverdale é o fenômeno mais evidente desse mal, que faz grande esforço em atrair a comunidade queer, mas não entrega nada, ou muito pouco, para eles. Roberto Aguirre Sacasa, showrunner da série, com certeza é sabotado pela produção tradicional do canal CW que, constantemente, faz queerbaiting, mas não só. Também responsável por Sabrina, nessa 2 temporada Roberto fez um desserviço anulando os relacionamentos homossexuais e colocando tudo na heteronormatividade. Não é uma valorização da bissexualidade quando Ambrose começa a sair com Prudence, pois o relacionamento dele com Luke foi brutalmente interrompido – além de mal explorado, e, durante todo o ritual do dia dos namorados, só observamos casais heterossexuais – deixando a sexualidade fluida para momentos de pegação, apenas.
Como vimos, existe ainda um longo caminho na representatividade, porém existem, sim, exemplos bem legais de como deve ser feito, e sempre procuro divulgar no blog – e pesquisar e aprender constantemente sobre. Não é fácil identificar esses casos, nem tudo é preto no branco, mas cabe a todos nós estarmos dispostos a reconhecer e ouvir as críticas tecidas pela comunidade mais impactada por esse efeito. Não se trata de uma frescura, mas sim de se fazer existir, de conseguir se identificar com personagens que, para heterossexuais cisgêneros é tão natural e simples.
Não vale sair em entrevistas e dizer que tal personagem “pode ser o que quiser, estamos receptivos a interpretações”. Na sua concepção, isso é algo que deve vir a tona, pois sexualidade e gênero fazem parte da personalidade da pessoa, e mesmo que não seja explorado na série – nem todo mundo precisa ter uma narrativa de romance – é importante ter esse aspecto definido. Se o autor não define, o público se encarrega disso, e, a tendência maior é que ele seja o padrão, e a representatividade seja inexistente, pois estamos condicionados a esse comportamento. Ser indiferente é um descaso com a causa, por isso, se o autor, criador, ator, whatever é realmente engajado e se importa, ele irá fazer essas definições do personagem e defende-las.
Não é frescura ou “mimimi” exigir personagens bem feitos, é um direito que todos temos. Uma população que foi ignorada e apagada da história precisa ser reconhecida, vista e respeitada. O entretenimento tem um papel crucial nesse processo, pois ele é a maior representação social, e por isso precisa englobar toda a diversidade e pluralidade das pessoas. Parte da rejeição, estranhamento e marginalização da comunidade LGBT é responsabilidade da mídia, que, por meio de filmes e séries, os anulam, ou determinam erroneamente como devem ser representados. Já passou da hora de termos personagens LGBTs que não sejam reduzidos a sua sexualidade, mas tenham trama própria, reais, complexas, com background definido, conflitos tridimensionais e questionem os estereótipos irreais montados para eles. Uma boa representatividade deixa o LGBT livre da caixinha que são colocados. Chega de queerbaiting, de transformar essa luta tão importante num circo ou numa cota, e comecemos a criar personagens humanos, plurais e reais.
Uma resposta para “O que é Queerbaiting e como isso prejudica a representatividade LGBT+”
Muito obrigada por esse texto incrível moça. Sou do Maratona de Sofá, e hj teremos um podcast sobre. Nos ouça, chama-se MaraMinas.
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