O episódio final de Game of Thrones será uma polêmica duradoura, afinal foram nove anos de uma expectativa sendo construída e não entregada no momento chave. A série se tornou um fenômeno mundial incalculável, com pessoas que eu nunca imaginei atraídas pelo tema vestindo a camisa. Porém, essa proporção épica se mostrou o verdadeiro inimigo, e ela se afogou na sua própria grandeza e cultura criada.
Se você me perguntar quando Game of Thrones se tornou tudo isso, eu não vou saber te responder. Um dia em 2012 eu estava fazendo meus downloads para assistir a série que quase ninguém ao meu redor conhecia, para chegar em 2019 e estar constantemente surpresa com os fãs mais improváveis que encontro em praticamente todos que me cercam. O crescimento espantoso e exponencial vivido por GoT surpreendeu a todos, inclusive os responsáveis pela série, e quando algo é tão grande, ele se torna quase inalcançável e foi isso que aconteceu. As proporções foram desmedidas dos dois lados da moeda e tanto a produção quantos os fãs colocaram uma expectativa inatingível na conclusão do projeto.
Por que me choca essa quantidade de pessoas amante de Game of Thrones? Pela razão de ser uma série extremamente de nicho na sua concepção. É muito difícil explicar GoT, sobre o que ela é: guerra medieval política com zumbis e dragões? Não é algo que surta interesse nas pessoas não nerd médias. Fãs de Senhor dos Anéis, O Nome do Vento e coisas nessa linha eram o público principal – mas ela acabou atingindo outras pessoas que, num primeiro momento, foi incrível, mas agora parece não ter sabido lidar com isso. As pessoas queriam ver muitas mortes, muito dragão soltando fogo, muitas guerras … mas será que ela sempre foi desse jeito? Bem, a resposta é não.
Quando Rhaegal morreu num susto e descuido de Daenerys, todo mundo criticou horrores, porém, na minha concepção, foi um dos poucos momentos de GoT raiz. Concordo que as circunstâncias foram meio absurdas, mas ali estava a essência da série: um descuido pode causar a morte. Nessa linha, temos a morte do Rei Robert, que, a princípio, apenas sabemos que morreu caçando javali – o que é, no mínimo, patético haha. Em Westeros, as pessoas pagam caro pela sua arrogância e distração, e ali estava clara essa mensagem que aprendemos desde o início.
Nas primeiras temporadas, com orçamentos bem menores, não temos cenas de guerra. Não vemos Robb Stark em uma única cena épica de batalha como tantas que vimos de Jon Snow mais para o final. A batalha da Água Negra é escondida, rápida, e acontece mais nas conversas do que no embate em si – e são momentos épicos para a história. Trouxe esses grandes exemplos para ilustrar que Game of Thrones sempre foi, sim, sobre guerras e política, mas não no aspecto visual, e, sim, no aspecto estratégico, nas consequências – a luta em si nunca foi a grande questão do negócio. Ao assistirmos as batalhas, especialmente da sétima e oitava temporada, temos uma direção impecável, orçamento imenso, cenas lindas, bem ensaiadas, enfim, visualmente perfeitas, mas a estratégia, a lógica, as consequências foram deixadas de lado. Porque as pessoas queriam ver algo nas telas que não era exatamente o que fazia a série especial, e os produtores caíram nessa armadilha.
Quando você coloca a Arya Stark para matar o Rei da Noite, é sensacional, mas não tem muito a ver com tudo que foi construído lá trás. A trama dos White Walkers era do Jon, ele conduzira essa parte da história desde o início, desde Uncle Benjen e tudo o mais. Essa era a guerra dele, ele literalmente nasceu para isso – precisava, sim, de um embate que fosse. A Arya nunca foi profetizada para matar o Rei da Noite, os próprios showrunners disseram que decidiram que seria a personagem bem depois da conversa com a dama vermelha. Eles disseram que queriam surpreender o público, bem, conseguiram, mas foi bom?
A série sempre se baseou muito em surpresas, tanto que criou um pânico de spoilers – e provavelmente a obra pop que alavancou essa palavra e cultura na cena atual. E aqui apresento o segundo pilar da derrocada da série: a necessidade de surpreender. A morte do Ned Stark foi, possivelmente, o primeiro enorme momento de choque que fomos apresentados. Porém, quando analisamos em retrospecto, não foi algo do nada, mas, sim, como eu disse acima, a série nos ensinando que deslizes não eram perdoados. George R. R. Martin sempre foi impiedoso com os personagens, não dava segundas chances. Essa foi uma surpresa construída, não tirada da cartola.
Voltamos a Arya, a menina foi treinada para ser uma assassina. Ela tinha uma lista cuja maioria das pessoas ainda estava viva. Isso a motivou dia após dia durante nossos 9 anos. Nenhuma das guerras, vinganças, ódio da personagem era direcionado a caminhantes brancos. Existia uma gama de pessoas importantes que ela poderia matar, a profecia de Melissandre era apenas sobre ser assassina, não matar o maior inimigo dos reinos. Então, por que raios tirar a história do Jon e entregar para Arya, que tinha seu própria arco a ser resolvido?
Nesse momento temos o ápice da novelização do globo que todos temiam: eles seguiram o termômetro dos fãs, dos expectadores, e abriram mão da construção realizada ao longo dos anos. Os fãs se apaixonaram por Arya, uma das, se não a, personagem favorita. O público queria se surpreender a todo momento pois acreditaram, erroneamente, que era assim que as coisas aconteciam na série. Os produtores juntaram as demandas e entregaram para a audiência o que ela queria – mas isso não é o que nós merecíamos, o que nós precisávamos.
Esse é o exemplo maior do que todos queriam dizer com novelização, usar os fãs como massa de manobra: seja para atender as demandas, ou frustrá-las de forma calculada, mas não planejada. A fobia desenvolvida pelos spoilers da série é responsável por esse final que é, em si, um grande spoiler e a essência do que é essa temida palavra e como ela pode estragar a experiência.
As pessoas aprenderam a odiar spoiler, e, realmente, muitas vezes eles podem frustrar a sua experiência. Porém, na maioria dos casos, ele é apenas um fato dentro de uma grande história que precisa de contexto para acontecer. Por exemplo, se dissessem nos primeiros episódios que o Tyrion seria mão do rei e ganharia uma guerra, ninguém ia levar isso a sério. Até que aconteceu, e, o mais importante, nós vimos acontecer, os giros que a narrativa deu e como tudo levou o personagem àquele fatídico momento. Existia uma linha clara do que estava acontecendo e viver essa experiência e crescimento com Tyrion foi mais especial do que o fato em si revelado pelo spoiler.
Agora, quando vemos essas duas últimas temporadas, o que sentimentos é o efeito negativo do spoiler. Quando Martin saiu do projeto para se dedicar aos livros, o que nos contaram foi que ele já havia descrito tudo que iria acontecer para os produtores. Ele pode ter dito “Bran acaba como Rei de Westeros”, esse é o spoiler que ele deu para os showrunners seguirem a narrativa, entretanto, eles esqueceram que também teriam de responder a outra pergunta: “como?”. Não é impossível o Bran acabar como rei, na verdade, se compararmos com a história base da Game of Thrones, a real do nosso mundo, vemos que seria um Stark, muito provavelmente. O problema é que em momento algum foi desenvolvido qualquer coisa nessa direção.
Não sabemos direito o que é esse corvo de três olhos, as coisas são jogadas e mal exploradas nesse assunto. Não entendemos bem o porquê da apatia excessiva do garoto, o que ele realmente consegue ver. Não entendemos nada do misticismo por trás de todo o role chatíssimo que encaramos da viagem dele para além da muralha – a ligação com o Rei da Noite, o poder de warg, tudo mal aproveitado e desenvolvido. O que temos é um menino chato, que não conversa com ninguém e, de repente, faz piadas e se diz pronto para assumir o trono – insinuando que via esse momento chegando há um tempo. O meu problema não é com o Bran assumir o trono, é com a forma como isso nunca foi construído para nós.
As teorias, que são por muitos apontadas como vilã, são um processo natural da interpretação do que é exposto pela história. Elas são, pelo menos as boas, uma inferência baseada nas pistas que o próprio autor vai deixando pelo caminho – o que se chama construir e não tirar a história do nada hehe. Não precisava, dessa forma, negar as teorias para nos surpreender, pois elas são, quase sempre, uma consequência inevitável da narrativa. Entretanto, elas também são incompletas, rasas na parte do “como?”. E é aí que se entra com o esclarecimento, aprofundamento e até negação dela. Existiam teorias que já diziam que o Bran iria sentar no trono, mas em que momento isso foi explorado pela série para transformar essa conclusão em plausível?
Martin pode ter planejado um final bem próximo ao que vimos, e, em certos pontos ele condiz com o que a série veio criando desde o início, porém os meios que chegaram a ele são imperdoáveis. A fobia de spoilers nunca foi realmente compreendida pelos produtores que entregaram um grande spoiler descontextualizado para o final das crônicas de gelo e fogo. Como se não bastasse, ouviram excessivamente os clamores de uma audiência que, em grande parte, não tinha pegado a essência da séria, entregando algo frustrante a todos. Game of Thrones nunca foi sobre matar por matar, mas sobre não perdoar vacilos, não existirem segundas chances.
Nesse sentido, Tyrion deveria ter morrido (e ele é meu personagem favorito), mas quantas cagadas ele cometeu e saiu ileso? Em que mundo Daenerys iria prendê-lo para, depois, executá-lo? Nunca foi sobre perder elenco de forma aleatória, mas sobre decisões impiedosas e dolorosas tomadas com muita sabedoria e uma cruel realidade. O elenco que chegou até a sexta temporada ali permaneceu, as mortes foram calculadas para serem tristes, porém nem tanto. Para serem épicas, sacrifícios nobres – isso não tem muito a ver com GoT. Ao contrário, os nobres e honrados sempre foram severamente penalizados em Westeros haha. Isso é a tal da novelização, a falta de colhões em assumir mortes bem construídas e ousadas em prol da história, aborrecendo e entristecendo de verdade os fãs, porque é isso a vida.
A pressa é inimiga da perfeição – e provérbios existem exatamente por essa razão, são verdadeiros. As últimas temporadas foram, tecnicamente, impecáveis, com batalhas lindas, épicas, e direção maravilhosa, cheia de dragões e tudo, mas a que preço? Além do orçamento, eles sacrificaram a essência da série e quebraram suas próprias regras. Abriram mão do ritmo lento, das sutilezas, dos detalhes minuciosos nos diálogos, do não dito, da construção lenta e embasada. Se esse era o preço para termos mais dragões, dracarys e batalhas, eu não estaria disposta a pagá-lo.
Para fugir de spoilers (com fracasso, visto roteiros todos vazados), chocar a audiência, e encerrar a super produção fenômeno mundial em seu ápice, eles assassinaram o legado brilhante, e assinaram a vitória comercial do projeto. E, para encerrar, não adianta dizer que não ia dar tempo. Temos cinco enormes livros adaptados perfeitamente em cinco temporadas, os dois livros restantes poderiam ser adaptados em três – se tivessem o embasamento que, obviamente, faltou. Produtores, showrunners, D&D, vocês são o próprio Bronn, mercenários que se tornaram lords e mão da moeda, parabéns pela incoerência haha. Em Westeros, erros não são perdoados.