A experiência de um filme não começa e nem termina na sala de cinema. Capitã Marvel é uma obra que vem me acompanhando antes de seu lançamento e que continua muito viva na minha memória e me moldando como pessoa. Junto com Carol Denvers, vivenciei um turbilhão de emoções e, apesar da heroína não ter parado de me ensinar desde que nos conhecemos, nossa relação não foi linear, e houveram conflitos.
No dia 07 de março fui ao cinema na sessão mais cedo que consegui para assistir a primeira heroína protagonista no Universo Cinematográfico da Marvel (MCU), Capitã Marvel. Meu hype estava mais alto do que o limite do espaço, porque, depois de dez anos acompanhando todo esse arco, finalmente seria a vez de termos a nossa protagonista! Havia chorado assistindo aos trailers, nas aparições da Brie Larson, e a cada dia mais próximo dessa data não tinha mais nenhum assunto na minha boca. E foi aí que comecei a cometer alguns erros.
Com uma expectativa desse tamanho, é claro que ficava inimaginável ela ser atendida. E inevitável que eu não saísse de lá levemente desapontada. Diante dessa situação, o que muitos fazem é culpar o filme, dizer que ele é “ruim” e daí por diante, o que não é verdade, ele é ótimo. Eu fui assisti-lo esperando algo inatingível, algo que eu nem sabia o que era direito, criei isso dentro de mim. Mas não o fiz sozinha. A Marvel, como normalmente acontece, criou uma festa ao redor do filme, com trailers super empolgantes, aparições e muita mídia orgânica (e polêmica) diante do fato da primeira heroína protagonista ser a mais poderosa do universo.
Como eu venho falando há um tempo, a Marvel Studios tem um gravíssimo problema com trailers. Ela conta a história inteira do filme neles, então se você assiste aos dois/três que são lançados, as chances de ser surpreendido no longa são mínimas. Para agravar a situação, eles ainda colocam as cenas mais significativas e empolgantes nesse material! O excesso de buzz marketing que fazem com os bonecos, trailers, e cartazes, acabam gerando uma expectativa imensa para o produto final que não é atendida, pois o expectador já havia recebido praticamente tudo daquilo antes – não existe um grande impacto ou surpresa.
Eu entendo que o MCU sofre um pouco pela presença massiva de fãs de quadrinhos e teorizadores, que tentam incessantemente desvendar o filme antes de ele acontecer, e já pressupor coisas da adaptação baseada nas HQs e criticar sem saber como realmente vai se desenvolver. É um modelo complicado que eles têm que administrar tendo criado o impensável: dez anos de filmes interligados numa saga épica! Mas com todo esse tempo, também, já deveriam ter aprendido com esse feedback negativo. A função do recurso é instigar as pessoas a irem assistir ao filme, mas sem entregar quase nada sobre ele. É uma linha tênue que eles precisam trabalhar melhor. E mais, não é algo que eles não saibam fazer, pois Vingadores Guerra Infinita e Ultimato estão aí para provar que dominam a arte de criar hypes com pouco. Capitã Marvel já estava vendido sem a necessidade de usar todas as cenas empolgantes do filme no trailer.
Na época em que assisti ao filme, uma das comparações que praticamente todos fizemos foi com Mulher Maravilha. Eu cheguei a comentar, inclusive, que senti falta da emoção que a Diana provocou em mim na cena da trincheira. Dois problemas aqui: o primeiro, como já explorado, foi o trailer; o segundo, pior ainda, foi querer comparar mulheres. A nossa base de super-heroínas no cinema é minúscula, e ainda queremos criar uma competição entre elas. A proposta dos dois filmes é muito diferente, de universos diferentes, e, o principal, são duas mulheres bem diferentes. Comparar Carol com a Diana é machismo, é um desserviço para todas nós. As duas são poderosas do seu próprio jeito, com personalidades distintas. É uma armadilha da indústria que, confesso, escorreguei, como muitas pessoas, e que prejudica todo o trabalho de inserção de heroínas protagonistas nas telonas.
Outra comparação que inflou minhas expectativas e, hoje, vejo como fui injusta, foi querer compará-lo a Pantera Negra. Assim como a situação acima, não faz sentido. Apenas por ambos serem heróis em filmes ditos de representatividade, não faz deles concorrência, ou objeto de comparação. Pantera Negra foi um ponto fora da curva, um filme praticamente perfeito, que estava presente inclusive na principal categoria do Oscar. Dos vinte filmes produzidos pela MCU, por que eu deveria comparar Capitã Marvel com o ÚNICO que chegou tão longe? Por que a minha régua de exigência de qualidade tinha que estar tão alta para o primeiro filme protagonizado por mulher, e tão baixa para um filme mais ou menos que eu adoro como Doutor Estranho? Quando me deparei com esses questionamentos, eu senti a famigerada bofetada na cara, e merecida! Mais uma vez cai na armadilha de um machismo arraigado no nosso interior que CAÇA desculpas para não aprovarmos e desfrutarmos protagonistas poderosas, exigindo um perfeccionismo inatingível.
Capitã Marvel é superior a muitos filmes do MCU, mas não é excepcional como Pantera Negra, e TUDO BEM. Porque filmes com representatividade não precisam ser sempre O MELHOR do seu gênero. Umas das minhas questões iniciais com ele foi justamente ser meio que “mais do mesmo”. Insistir praticamente no mesmo formato de roteiro, piadinhas e vilões mais ou menos. E ele é um pouco assim, mas, de novo, TUDO BEM! Porque, no fim do dia, ele é, sim, mais um filme da Marvel de introdução de personagem baseado em quadrinhos. Isso não significa que eu não deva ser crítica e exigir melhoras, crescimento, desapego dessa tal fórmula, mas não tenho que despejar isso em Capitã Marvel e relevar nos filmes bem medianos protagonizados por homens padrão.
Agora, todas as críticas, principalmente de macho, sobre a atuação e/ou personalidade da Brie Larson, bem, isso é um buraco mais embaixo. Eu acredito que essas duas críticas se relacionam e no fundo falam basicamente da mesma coisa: Capitã Marvel não é o estereotipo feminino esperado. Nesse contexto de HQs e herois estamos acostumados com mulheres ultra sexualizadas, combatendo o crime de mini saia, decote imenso, salto alto e maquiagem no rosto. Isso SEMPRE me desagradou, não apenas pelo absurdo e falta de praticidade de movimento e luta, mas porque nem todas as garotas querem ser sexy e sensuais. Esse fetiche masculino e objetificação da mulher sempre ficou evidente, com um olhar extremamente raso e inverossímil que se preocupava excessivamente com o exterior e nada com o interior, o desenvolvimento e aprofundamento de suas personalidades, motivações.
Isso também está relacionado com o que é esperado psicologicamente de uma personagem mulher – sorrisos despropositados, simpatia excessiva, abnegação, romance. Carol Denvers não entrega NADA dessas projeções, e isso não significa que ela não está bem representada, mas que ela está ali mostrando um tipo de mulher que não é o que a indústria (maschista) construiu ao longo dos anos. Então os questionamentos em relação a atuação da Brie Larson por ela não sorrir muito no filme é apenas um machismo escancarado e uma procura desenfreada por defeitos. Vers é muito determinada, irônica (as piadas dela com Fury são MARAVILHOSAS), solidária, ousada. A personalidade dela é muito bem trabalhada e para a pessoa não entender (ou enxergar) é porque ela se esforçou muito para isso. A noção de família, as amizades, a ausência de par romântico, tudo isso é perfeito e poderoso na obra e de longe um dos pontos mais altos de toda a trama.
O filme martela em diversas camadas a construção da personagem e fala de feminismo de uma maneira muito mais aberta e profunda do que eu havia percebido inicialmente. Não é só o Jude Law dizendo que ela precisa “esconder os seus sentimentos” ou controla-los – o que por si só já dá uma boa imersão na realidade difícil de ser mulher – mas em vários detalhes. O que percebi lendo outras críticas (principalmente feita por mulheres) é o quão poderosa é a cena final dela com a Inteligência Suprema. E muito se engana quem acredita que a mensagem se resumi na cena icônica dela se levantando toda vez. É claro que esse é um momento bem Girl Power, mas quando ela se liberta e descobre seu potencial e os seus reais poderes, aquilo é de uma magnitude para as mulheres que acredito que nenhum homem branco hétero cis consegue compreender.
Acima de tudo, o longa deixa bem claro que mulher não precisa provar nada para ninguém, assim como esse filme. É uma história que retrata o que é ser mulher na sociedade, o sempre estar sendo subjulgada, com pessoas dizendo o que fazer, o que sentir, o que dizer, constantemente presa numa rede de controles que a impede de se conectar consigo mesma. Essas emoções são expostas no longa de forma evidente e delicada, mas que exige uma sensibilidade e empatia que muitos pareceram deixar em casa. E, convenhamos, muitos seres humanos do sexo masculino sabotam as mulheres porque tem medo do seu real poder, Carol Denvers já entendia isso.
Ah, e o boicote? Eu não acho que isso tenha muito a ser explorado além do meu profundo desprezo por todas pessoas que gastaram seu tempo em avaliar negativamente algo que ainda nem haviam visto. Elas são um desserviço para a comunidade nerd, e não podemos permitir que discursos de ódio, misóginos, machistas, racistas, ou qualquer coisa que oprima e desrespeite o próximo, tenham espaço. Mas não basta apenas repudiar esses atos, que é o mínimo que se espera de um ser humano decente, mas também reavaliar os seus pensamentos e atitudes. Não são nos grandes circos odiosos que essas mensagens se perpetuam, mas nas pequenas críticas e atitudes que passam despercebidas.
Vamos pegar a implicância excessiva sobre ela ser overpower, por exemplo. Isso está sendo dito há uns dois anos, mas o que aconteceu? Picuinha mil de macho. O que, pra mim, se resume na recusa de homens padrão em dividir poder, influência e importância – tudo bem o filme protagonizado por mulher, mas não vem me dizer que ela é a mais forte. É uma forma de manifestar a insatisfação (mesmo que inconsciente) em ver sua posição social sendo compartilhada com outros, o que eles entendem como “ameaça”. Ninguém nunca implicou com o Superman, que, diga-se de passagem, sempre foi um porre, e inúmeros outros que são tão “roubados” quanto ela. São essas pirracinhas que fazem com que as pessoas opressoras vistam uma máscara de “cara bacana” que quer representatividade, desde que ela não me tire da liderança, do protagonismo, da hegemonia – porque, no fundo, não querem sair do topo da pirâmide social.
Isso tudo não saiu apenas da minha cabeça, foi sendo construído a cada texto que lia sobre o assunto. O filme ganhou uma importância muito maior para mim depois desse processo de digestão, e agora posso dizer que gosto e o admiro bem mais do que quando sai do cinema naquele longínquo dia 07. Essa foi uma jornada em que cresci, amadureci e tive uma oportunidade incrível de olhar para dentro de mim e descontruir pensamentos machistas – porque eles estão em todos nós, e precisamos sempre estar abertos em reconhecer e mudar. Não tem vergonha em reconhecer falhas e mudar de opinião, vergonha é continuar cabeça dura e propagando um discurso imaturo e insensível.
Ao final, Capitã Marvel é uma grande quebra de expectativa: ele não entrega o que todo mundo esperava, mas o que precisávamos. O filme mostra que nem tudo precisa ser grandioso para ser épico, memorável e parte de uma identidade que está começando a ser construída (não é mesmo, Fury). Caso você queira se aprofundar melhor nesses pontos, recomendo muito os vídeos feitos pelo canal Nebulla e pela Mikannn, elas abriram muito meus olhos e me deram uns tapinhas que eu estava precisando haha. É em cada criancinha vestida de Capitã Marvel que percebemos a importância do longa, o que ele realmente significa e porquê ele precisa estar entre nós. Juntas, nós, mulheres, sempre podemos ir mais alto, mais longe e mais rápido 😉
PS: Maria, Mônica e Mar.Vell são personagens incríveis e merecem o mundo – só não deu tempo de abordar mais isso aqui nesse textão hehe.
4 respostas para “As armadilhas para alcançar Capitã Marvel”
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