Vidro é fruto de uma inesperada trilogia de super heróis criada por M. Night Shyamalan. O diretor e roteirista tem um histórico de inconsistências em sua carreira, e, apesar da conclusão digna e satisfatória dessa obra, é possível enxergar os altos e baixos no longa.
A história do filme começa em 2001, com o lançamento de Corpo Fechado (Unbreakable – um título muito melhor). Dezessete anos depois veio outra obra com selinho Shyamalan, Fragmentado (Split), que chegou de surpresa, agradou a todos e contou com minutos finais que arrancou um verdadeiro “AAAA” dos fãs do diretor. Acontece que ali, nos instante finais, Shyamalan uniu o universo desses dois filmes – e, engatado nessas famosas cenas pós créditos típicas do gênero, anunciou o seu ambicioso projeto de juntar David Dunn (Bruce Willis); Ellijah Price (Samuel L. Jackson) e Kevin/A Fera (James McAvoy) em um só filme!
É necessário ter assistido aos filmes anteriores para acompanhar Vidro? Não, necessário não é, pois, o filme situa muito bem todos os personagens e dá um belo resumão do que se passou nos anteriores. Entretanto, para conseguir analisa-lo e extrair tudo o que ele tem a oferecer, eu recomendo fortemente que você venha com uma bagagem. Um dia depois de ter assistido ao filme, lido a respeito e assistido a vários vídeos eu posso afirmar que ainda não cheguei a uma conclusão sobre ele – e ele tem dividido muitas opiniões. Por isso essa crítica vai ser uma discussão sobre tudo que eu absorvi, tentando organizar as ideias e ver se assim decido se gostei da obra ou não!
O filme começa promissor e tem um primeiro ato muito bom! Ele situa bem os personagens, nos fornece um panorama geral da situação de cada um, e de onde a história pode caminhar. Só que o segundo ato é ruim, ele perde o ritmo e, no meio do filme, até o propósito – a tensão esfria, e você não entende onde aquilo tudo quer chegar e acaba se desconectando. Além disso, é nesse momento que o roteiro tem alguns furos (pequenos) e a passagem de tempo é muito confusa. O terceiro ato é muito polêmico e o filme não te oferece um simples plot twist, ele é praticamente um jogo de peteca! A história vai se contorcendo de um jeito que é típico ao Shyamalan, mas que gera uns sentimentos mistos de difícil interpretação haha.
Para mim, Vidro não é um filme de super herói, mas sobre eles, e é uma grande homenagem a esse universo, mas tem problemas. A ideia de analisar essas pessoas extraordinárias do ponto de vista psicológico é interessante, mas não é foco do filme como acreditei que seria (faltou alinhar as expectativas), assim ela não é desenvolvida e logo é abandonada no longa. As explicações excessivamente expositiva em relação aos quadrinhos ao longo da narrativa são exaustivas – um problema frequente do diretor que vivemos em Fragmentado, e distraem e desconectam um pouco do filme. Quadrinhos são um elemento onipresente na história e que a enriquece bastante, mas Shyamalan poderia subestimar menos a compreensão do expectador. Além disso, essa questão esbarra inclusive nos diálogos que, muitas vezes, não soam naturais porque o personagem está sendo didático com o público.
Em contrapartida, a forma como a história é construída em cima de uma narrativa de quadrinhos é brilhante! Shyamalan teve uma ideia incrível de como trabalhar esse tema e pegar a essência do que é ser um super herói e transpor de um jeito autoral. O diretor tem um vasto histórico de colocar uma pitada de fantasia em suas obras realistas, e isso é algo que ele trabalha muito bem no filme. Ele precisava disso para passar a mensagem mais importante de toda essa trilogia: você é aquilo que você acredita ser – o seu poder vem da fé que você tem nele, nas suas habilidades.
Assim, Shyamalan afirma que você é o herói (ou vilão, fica a seu critério haha) da sua própria história! E também mostra para nós como no autoconfiança incomoda, como você se destacar em alguma coisa é visto como uma ameaça por muitas pessoas, o que faz com que muita gente lute para você ser comum, mediano. O que mais tem nesse mundo são pessoas que querem minar a autoestima alheia, pois enxergam o potencial do outro como uma ameaça a sua vida, a sua posição, a ordem das coisas.
Histórias de heróis mexem muito comigo, e é exatamente pelo motivo que o Shyamalan colocou ali na tela. Pessoas com traumas, “danificadas” como nomeia A Fera, que sabem o que é sentir um vazio e uma dor enorme, mas que resolvem tirar o melhor da sua experiência. É isso que são os personagens do filme – é assim que a gente vive na vida real. É uma mensagem que me pega no coração e conversa muito com toda a trilogia. O filme também dimensiona bem o universo dos quadrinhos de forma geral, faz algumas críticas e explora a influencia que isso pode exercer nas pessoas (e fala de posers haha).
Porém a forma como isso é executado no filme é muito questionável. Ele subverte a fórmula dos dois primeiros – que foi motivo de sucesso – e não constrói a mensagem da trama aos poucos, como se tivesse subindo uma montanha para chegar no topo, no auge. Aqui ele passa o filme todo tentando enfiar uma coisa que ninguém compra por meio da personagem da Sarah Paulson (mais a seguir rs), e quando chega o final joga uma avalanche de informação na sua cara! Não chega a ser um Deus Ex Machina pois não é uma solução, mas as coisas são tiradas do bolso tanto quanto, sem construção nenhuma!
Seria muito mais prazeroso se o tempo gasto no hospital psiquiátrico fosse melhor aproveitado para introduzir algumas coisas apresentadas no final, ao invés de só ser uma barriguinha do filme! Enquanto um lado temos um plano mirabolante genial – que respeita os personagens, do outro temos uma coisa mal planejada acontecendo quase no improviso do roteiro. E é daí que saem os famosos mixed feelings desse final.
A direção é sem defeitos e nesse ponto Shyamalan sempre sabe o que faz! Ela é ousada e foge um pouco do convencional, é de longe um dos pontos mais altos do filme. O diretor é conhecido pelas suas metáforas e enquadramentos diferentes que se comunicam com o expectador. O longa tem muita câmera na mão que, apesar de ser ~tendência, ele utiliza com propósito. Usa cores para representar os personagens, um recurso clássico dos quadrinhos. Ainda em referência eles, os enquadramentos do diretor são, muitas vezes, claramente inspirados nos gibis. As imagens de câmera de segurança, os planos longos, as cenas fracas de ação – tudo isso está ali para acrescentar a história. Enfim, é uma direção ótima!!
Por fim: os personagens. Praticamente todos eles já haviam sido apresentados para nós nos dois filmes anteriores e aqui ele levou o trio principal ao seu máximo desenvolvimento – para dar um encerramento mais ou menos. De longe, David Dunn é o mais fraco de todos: o menos interessante e o menos explorado no filme (não sei qual é causa e a consequência haha) – dá para contar nos dedos quantas vezes Bruce Willis abre a boca – é subaproveitado, com pouco desenvolvimento e um desfecho que exala o roteiro com furinhos. Em oposição temos Kevin/A Fera com a atuação impecável de James McAvoy e uma conclusão de arco irretocável, mas que em determinado momento ficou over. A troca de personalidade ainda é o ponto alto, e aqui conhecemos novas facetas das 24 opções, porém poucas são exploradas, e, às vezes, a troca excessiva é exaustiva e um abuso de uma técnica que deu muito certo – quase um exibicionismo que pouco acrescenta.
Esses dois personagens tiveram seus filmes solo – com seus nomes inclusive, faltando apenas uma peça nesse jogo: Ellijah! Vidro é o codinome do vilão dessa trilogia e Samuel L. Jackson entrega um personagem que atingiu seu auge! Tanto a atuação quanto o desenvolvimento de Ellijah são incríveis, e ouso dizer que ele leva a história nas costas – principalmente nos momentos difíceis. A conclusão divide opiniões, mas achei um final catártico que o personagem clamava e merecia.
Nesse filme temos a introdução de uma nova personagem, a psiquiatra Elle Staple (Sarah Paulson) e essa é uma personagem que não ficou legal. Desde o momento que ela aparece você não se convence com nada do que ela diz – que é muito vago, e não consegue dar autoridade como psiquiatra, e as coisas ficam muito jogadas no ar – porque foram mal feitas rs. No final você “entende” o porquê ser assim, mas eu não acho que justifique o desenvolvimento fraco da personagem. Daria para seguir nesse objetivo do roteiro e dar um background a ela, uma personalidade ao menos – ela é meio parede – e tinha um potencial enorme e seria uma peça fundamental para construir melhor aquilo que comentei das informações jogadas. E aí começam os problemas com personagens femininas que me entristeceram um pouco.
Casey (Anya Taylor Joy) (a menina sequestrada pela Fera em Fragmentado) é muito mal construída, ou continuada, o que a torna inverossímil e de difícil relação. A mocinha aparece outra pessoa, as coisas começaram a dar certo depois do resgate e finalmente ela está numa vida bacana, porém não deve ter um ano entre Fragmentado e Vidro – e a menina não apresenta nenhum trauma, tanto do sequestro, quanto dos abusos sofridos. E apesar de ela ter entendido a situação de Kevin e terem ali compartilhado algo, coloca-la na situação do filme foi uma forçação de barra tamanha! Shyamalan ignorou traços importantes e consequências emocionais da personagem e a utilizou apenas como uma ferramenta para um plano maior e humanização do personagem masculino. Quando você começa a enxergar o filme do ponto de vista da Casey, ele não faz sentido.
Outra situação triste para as mulheres no filme é a mãe do Ellijah (Charlayne Woodard) – sim, esse é o nome dela: nenhum! A personagem compartilha cenas incríveis com o filho e puft, não se deram ao trabalho de dar um nome para ela, que desenvolve uma função narrativa importante e tem um tempo de tela considerável – se ela não tem nome, eu não vou nem dizer se ela tem desenvolvimento né? Haha. E esse não é nem o único ponto, a atriz, Charlayne, tem 65 anos – Samuel L. Jackson tem 70 anos. Agora você imagina isso no filme – sim, fica patético. Ellijah parece mais velho que a própria mãe, e a doença é no osso não na pele rs. O mais bizarro é pensar que são os mesmos atores de corpo fechado, então, em 2001, Charlayne, mais novas, já era mãe de Jackson. Nada justifica essa coisa horrível no filme que não cultura machista e pressão estética sobre mulheres, me perdoem, mas isso não engoli.
Depois desse trabalho questionável com personagens femininos, temos Joseph Dunn (Spencer Treat Clark) que, apesar de homem, também perdeu a essência. O menino era o centro do drama pai – filho em Corpo Fechado, e aqui ele é um alivio cômico ingênuo. Não tem muito o que acrescentar, pois, como o pai, é pouco aproveitado e acredito que ele teria muito a oferecer.
O ponto com esses três personagens é que eles funcionam como sidekicks de seus super heróis respectivos e são uma grande hipocrisia dentro do filme, ao meu ver. Shyamalan quer mostrar com Vidro a importância desses ajudantes, mas, ao mesmo tempo, pouco se preocupa em desenvolvê-los e criar uma personalidade, identidade, para eles. Esses personagens são subaproveitados e manipulados como uma ferramenta narrativa, ao invés de potenciais super heróis. Os próprios personagens do filme parecem dar mais créditos a eles do que o próprio roteirista!
Ufa, ficou um textão! O que posso dizer é que Shaymalan é míope com suas histórias – ele foca muito em certos pontos, mas outros ele esquece de trabalhar. Ele é um roteirista genial, com excelentes ideias e que tem muito claro o ponto de partida e de chegada – e de muitas surpresas – porém o miolo deixa a desejar, e acaba de perdendo um pouco. O foco excessivo na construção dos plots twists talvez gerem esses furos no roteiro. Falta uma visão holística de personagem e de construção de narrativa. Como diretor ele é experimental, moderno e consegue extrair tudo dos atores, é excelente! Agora, se eu gostei de Vidro? Depois pistolar, pesquisar, e pensar a respeito posso dizer ok. Faz sentido com a obra de Shyamalan e com a trilogia construída – mas não é perfeita. Traz um frescor e uma novidade para o universo de filmes de super herói que há um tempo carecia.