Dirigido por uma mulher negra, Mudbound chegou tímido no circuito de cinema nacional, o que é uma pena. O longa conta com uma trama forte, atual e importante, além de fazer história indicando a primeira mulher ao Oscar na categoria de fotografia. Um filme que, sem dúvidas, merece sua atenção.
Adaptado do livro homônimo de Hillary Jordan (romance de estreia da autora) escrito em 2008, Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi (subtítulo meio nhe) se passa em 1946, logo após a Segunda Guerra Mundial – época em que os EUA viviam a segregação racial. A história permeia a realidade de duas famílias: Uma na qual a esposa acompanha o marido em busca de seu sonho de ser fazendeiro, mudando completamente de vida – Os McAllan; Outra que mora e trabalha na fazenda dos McAllan, os Jacksons, que não exatamente escravos, mas é quase como se fossem. Ambas famílias recebem um parente que é veterano da guerra, após acabarem de lutar no front – esses dois veteranos desenvolvem uma amizade forte e improvável.
O primeiro ato é dedicado a introdução dos personagens e contextualização. De forma rápida e objetiva, temos como se deu a formação atual da família McAllan e a sua mudança para o Mississipi, bem como as motivações e realidade da família Jackson, que recebem um novo patrão. A partir de então, a história começa a tomar forma, e vamos observando o destino dessas duas famílias se entrelaçando.
O segundo ato é lento, as coisas vão acontecendo aos poucos, e é gradativamente que a história vai cativando o expectador. É um daqueles filmes que muitos classificariam como “nada acontece feijoada” – mas calma, nesse longa são os personagens que levam a história, e não a história que arrasta os personagens para a aventura. O filme tem esse tom de épico rural norte americano, numa pegada meio E o Vento Levou… O ritmo do filme acompanha o contexto da história, afinal, a vida no interior do Mississipi em 1940 não devia ser das mais agitadas, não é mesmo?
Quando nos aproximamos do terceiro ato, a história ganha outra cara. E apesar de sermos preparados pela narrativa para aquele ponto, a surpresa e o horror são inevitáveis. No momentos finais temos uma cena impactante, violenta e brutal que aconteceu no momento certo, e praticamente encerra o filme, mas que você leva consigo muito depois dos créditos. É de causar repúdio – com um toque de medo real de isso ainda ser uma potencial realidade.
O filme começa pelo final, ou seja, a primeira cena é a mesma que a última. Esse é um recurso questionável e que, para muitos, enfraquece o roteiro, porém, Dee Rees o utiliza com sabedoria. Ela consegue balancear muito bem a previsibilidade dos eventos com a complexidade que aquele cena adquire conforme conhecemos a história. Quando chega o fatídico ponto, você é só emoção e tensão, e uma cena que antes parecia algo sem importância, faz você perder o folego e as palavras.
Outro recurso utilizado e que, normalmente, é tido como enfraquecedor de roteiros é o Voice Over (a narração feita pelos personagens). Pelo que apurei online, o livro é narrado em primeira pessoa por diversos personagens. Dee Rees e Virgil Williams conseguiram sabiamente utilizar desse recurso para dar voz aos personagens que justamente eram silenciados na época. O recurso é utilizado por aqueles que não tinham seus sentimentos ou ideias levados em conta, que observavam de forma passiva (por falta de alternativa) as mazelas em que se encontravam (mulheres e negros). Tanto o é que, Henry McAllan, o arquétipo americano, não dispõe desse espaço, ele é um personagem ativo, que faz, realiza, e não tem um momento de introspecção.
Isso nos arremete ao arco de Henry e Laura. Logo nas primeiras cenas, Laura nos conta como foi parar naquele relacionamento, que não é EXATAMENTE fruto do amor e paixão. Para ela, e para as mulheres de forma geral naquela época, o casamento era seu propósito, a vida que sonhavam (ou deveriam). Entretanto, na prática, essa entidade acabava por ratificar a posição inferior das mulheres na hierarquia social. Laura não tem voz, seu marido não a enxerga, não a leva em consideração. E isso nos é passado pela situação do cotidiano da moça – ele está sempre ausente, inclusive quando ela mais precisa; e Henry toma decisões sem a consulta-la, eles não se comunicam de verdade.
Apesar de ser em 1940, a instituição patriarcal abordada pelo filme permanece muito atual. Carey Mulligan (eu ADORO essa atriz) está incrível no papel, e acredito que a direção de Dee Rees foi fundamental para conseguir retratar com tamanho brilhantismo as nuances da mulher no casamento, representando a solidão, a dor, a força e perseverança (afinal, ela tinha duas filhas para criar numa casa aquém da que estava habituada, inclusive sem energia elétrica). É um papel sensível e delicado apresentado com muita honestidade sob a ótica feminina.
Outra mulher incrível no filme é Florence Jackson, tão incrível que Mary J. Blade foi indicada pelo papel como melhor atriz coadjuvante. A mulher é a personificação da dor perene de ser uma mãe, negra, que tem que lidar com diversos tipos de sofrimento. Seu filho mais velho está na guerra, ela sacrifica a convivência e criação dos outros pequenos para trabalhar fora e tentar dar a eles um futuro melhor. Ela é uma mulher que se anula em prol do melhor para a família, além de ser muito generosa. Suas reflexões são pesadas, carregadas de verdades sociais não ditas. Em contrapartida, seu marido, Hap Jackson (Rob Morgan) é a dor em seu ápice, visceral, profunda, e também é vítima de um sistema cruel, e está lutando por uma vida melhor.
Por fim, temos o relacionamento de Jamie McAllan – irmão de Henry (Garret Hudlund – o menino do Tron gente haha) e Ronsel Jackson (Jason Mitchell). Quando voltam da guerra, ambos têm dificuldade em se conectar com a família e com a realidade. Jamie está traumatizado pelo que viveu em campo de batalha, e, agora, tem que encarar a hostilidade do pai (Jonathan Baks) – a encarnação do próprio demônio – e ver a cunhada em pleno sofrimento e o irmão vivendo numa bolha (cego diante a realidade). Enquanto Ronsel não consegue conceber o atrasado da civilidade de seu próprio país com o racismo institucionalizado (a realidade que viveu na Europa era mais avançada, inclusiva), enfrentando os brancos e sendo repreendido pelo pai.
Assim nasce uma amizade improvável, mas verdadeira, na qual se deparam com uma compreensão que não encontraram em casa. A relação dos dois é sobre empatia, e vão acabar descobrindo que o verdadeiro perigo não estava no campo de batalha contra os nazistas, mas em seu país, em casa. E, como disse anteriormente, o Pappy McAllan (ele não tem nome mesmo) é a representação da “manutenção da supremacia branca” dos americanos naquela época, ou seja, ratificando, o anticristo encarnado.
Para finalizar essa análise (eu nunca vou aprender a falar pouco, né, pessu?), temos a fotografia, que é assim, uaaaau. Rachel Morrison entrega um filme escuro, acinzentado que, até nos dias mais bonitos e de sol, tem a saturação baixa, indicando a melancolia dos personagens. A paleta de cores é voltada para o castanho, que faz alusão a sujeira, a lama, que está presente no filme todo. É bonita, elegante e contribui na criação da atmosfera certa, ela realmente se sobressai. Eu estou muito feliz que em 90 anos (?) de cerimônia do Oscar temos a PRIMEIRA MULHER indicada na categoria, sério, gente.
A direção de Dee Rees é contida e segura para tornar a experiência do espectador confortável e familiar. Não é uma direção de ousadias e assinatura, mas é bem competente. Em tradução livre, Mudbound seria algo como o Limite da Lama, e justamente, a lama é quase um personagem, estando sempre presente. Os personagens estão frequentemente sujos de lama, presos pela lama, envoltos de lama. De forma geral (ou não), é um trabalhado fechado, sem pontas soltas, com simbolismos e significado.
A essa altura, se você ainda está lendo – o que acho meio milagre, valeu mesmo – deu para notar que eu AMEI o filme! Me surpreendeu demais, eu não esperava algo tão potente, bruto e delicado ao mesmo tempo, e saber que ele foi feito em sua maioria por mulheres me fez admirar ainda mais a obra. Me tornei fã de Dee Rees, estou torcendo horrores para Rachel Morrison e enfatizou meu amor por Carey Mulligan haha. Apesar de tudo isso, ele não é um filme que todo mundo vai gostar. É pesado, lento, denso e sim, meio que demora para pegar no tranco. Eu recomendo muitíssimo que você vá prestigiar o trabalho dessas mulheres incríveis, que merecia sim mais notoriedade, mas avalie bem se esse é seu tipo e filme haha.
PS: A capital do Mississipi é Jackson – e eu achei isso FANTÁSTICO. Na minha interpretação, Hillary Morgan indica que o estado americano sulista, que era escravocrata e por muito tempo após a abolição continuou com essa mentalidade racista, foi construído por negros. Sério, achei genial esse cutucão.
PS2: O filme é produção original Netflix (uau né, Netflix no Oscar). Aqui no Brasil ele vai estreiar na plataforma com um atrasadinho, pois entrou no circuito de cinema, mas fique ATENTO. Logo mais ele chega e você já corre para por na lista (com prioridade, não esquece ele lá não, por favor haha).
Uma resposta para “So, what about you? What’s the worst thing you ever done?”
[…] indie desconhecido, Pariah está nessa lista como um achado da diretora que amo Dee Rees – de Mudbound, hino ignorado. Originado de um curta, o filme vai contar a história de Alike, uma jovem negra […]
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