Sabe quando um filme mexe tanto com você, e diz muito, dizendo pouco? Mother! estreou no último dia 21 aqui no Brasil, mas está dando o que falar ao redor do mundo. É um experiência, rica, complexa e perturbadora que faz pensar. É o filme que eu precisava e não sabia.
O filme começa com os personagens de Jennifer Lawrence e Javier Bardem morando em uma casa de campo isolada. Jennifer está restaurando a casa inteira após um incêndio que a destruiu e Javier Bardem é um poeta que está em crise de inspiração. Então um dia, o casal recebe a inesperada visita de um médico, que confundiu a casa deles com um hotel. Logo descobrimos que o tal médico é um grande fã do poeta, que o convida para passar a noite no seu lar. Jennifer fica desconfortável com a ideia, mas trabalha para ser uma boa anfitriã. A partir de então, uma sucessão de eventos vai se desencadeando, transformando a casa do casal em um verdadeiro inferno para a esposa.
O primeiro ponto para falar sobre Mãe! é que o filme provavelmente não é o que você está esperando. Todos os lugares estão dizendo isso, e é verdade. A primeira vez em que assisti ao trailer achei assustador, e imaginei que fosse um filme de terror. Bom, não é, não tem nada de tão aterrorizante, então se você também ficou levemente apavorado com o trailer, relaxa. Já em relação a sair da sala de cinema meio desconfortável e incomodado, acontece. A história se dá no subtexto, nas entrelinhas, e tudo o que está sendo dito e mostrado é algo muito mais simbólico e representativo do que parece.
Gabriel Gaspar, do canal Acabou de Acabar (que é ótimo, assistam), se referiu ao filme como um “filme arte”, e eu concordo. A arte é muito pessoal e subjetiva, cada pessoa interpreta uma pintura, uma escultura, uma música, baseada na sua personalidade e experiências, e assim é com Mãe! Apesar de conseguir pegar todas as milhares de referências e interpretar a história no seu sentido mais profundo, a percepção que cada um vai ter do que está ali sendo passado é muito individual. O filme não tem uma mensagem pronta e clara para ser absorvida, ele exige muita interpretação, e muita reflexão. Você não vai conseguir sair dele e não ficar pensando a respeito por pelo menos um dia.
Darren Aronofsky é o diretor, produtor e roteirista do filme, ou seja, é exatamente do seu jeito, o dono do projeto inteiro haha. Uma figura controversa, com algumas polêmicas acumuladas e filmes que são mind blowing e excelentes. Aronofsky é um americano criado em meio a cultura judaica, e, apesar de não ter uma religião hoje em dia, é nítida a influência do judaísmo na sua carreira. Ele foi responsável por Noé, aquele filme com Russell Crowe, Anthony Hopkins e Emma Watson, bem polêmico na época, e me fez repensar o conceito de Deus (o homem cutuca isso haha). Darren roteirizou Requiem for a Dream e The Fountain – nunca assisti nenhum, mas quero muito, Netflix ajuda! Dirigiu o amado, aclamado, maravilhoso e inigualável Cisne Negro e produziu O Lutador e Jackie. Em resumo, com um currículo desses, o homem sabe MUITO bem o que está fazendo.
Em Mãe! é possível ver o coração e a mente de Aronofsky trabalhando. É um projeto muito pessoal, fruto de um processo criativo altamente introspectivo, e que, para mim, não poderia ter sido realizado por outra pessoa. A escolha de Jennifer Lawrence e Javier Bardem como casal protagonista foi perfeita! J-Law dá um show de atuação, no que talvez tenha sido o maior desafio da sua carreira, e o que dizer de Javier Bardem né, gente, o homem consegue pegar umas nuances que olha, só maravilhoso! No elenco, também temos a presença de Michelle Pfeiffer, que rouba a cena sempre que aparece, Ed Harris e Kristen Wiig.
O filme inteiro é sobre o ponto de vista da personagem da Jennifer Lawrence, a câmera fica na cara dela e no que ela está vendo o tempo todo. Nós sabemos o que ela sabe, e isso não é muita coisa. Além disso, a câmera está sempre em movimento, rodando, com closes absurdos, quase claustrofóbicos. Num primeiro momento causa estranheza, mas logo você percebe que isso também faz parte do processo narrativo e é um dos principais fatores que permite criar empatia com a personagem.
Dito isso, se você ainda não foi assistir, e gosta de um filme meio loucura, reflexão, bug mental, vá! Se você odeia pensar assistindo a um filme, acredito que não precise ir ao cinema, pode passar essa experiência. Me dói dizer isso, especialmente porque o filme está indo meio mal de bilheteria e eu AMEI, mas é verdade. Para quem não gosta de ler as entrelinhas e fazer associações mil, o longa pode não fazer sentido. Se você ainda está na dúvida, ou já assistiu, vou falar agora com alguns SPOILERS!
SPOILER ALERT! Leves, mas spoilers.
Primeiro ponto que você já deve ter percebido é que os personagens não têm nome. O filme inteirinho e nenhum nome foi pronunciado! Isso porque o filme é sobre um mito, o mito da criação. Não há um aprofundamento de cada personagem, não há um passado na vida deles, porque eles estão ali para cumprir seu objetivo. De forma geral, Javier Bardem é Deus, e Jennifer Lawrence é Mãe Natureza (agora o nome do filme faz sentido haha).
Durante todo o longa, vemos Jennifer cuidando da casa, restaurando cada pedacinho. A relação dela com o lugar é quase simbiótica, ela sente a vida que há nas paredes do imóvel. A casa é uma alegoria ao nosso mundo, que a Mãe Natureza molda, cuida, e transforma num lugar lindo e agradável de se viver. A dica está no trailer, quando Javier Bardem diz que a Jennifer deu vida e alegria a casa (eu não entendi isso até sair do filme haha). Nós a vemos alegre, a vontade, com roupas confortáveis, flutuando pelo lar. Enquanto isso, Deus, seu marido, um poeta sem inspiração, tenta criar um novo poema sem muito sucesso.
Então, temos uma sucessão de acontecimentos bíblicos. Adão e Eva, o fruto proibido, expulsão do paraíso, Caim e Abel, o grande diluvio, até o sacrifício de Jesus. Tudo isso sob o ponto de vista da Mãe. Então, vemos as pessoas invadindo a sua casa, usando suas coisas, abusando de sua hospitalidade, ignorando suas orientações, invadindo sua privacidade, destruindo tudo que ela levou tanto tempo criando e restaurando, tomando cada espaço que antes era seu. Conforme invadida, a casa vai apodrecendo, e se tornando uma prisão, um inverno que a Mãe não consegue sair.
Eu tinha escrito duas páginas sobre esse último parágrafo, mas resolvi me conter. São tantas metáforas, cada detalhe tem tanto significado e nada acontece por acaso no filme. Eu poderia passar horas falando sobre, e ainda teria mais a ser dito. E olha que eu passei horas assistindo e lendo reviews do filme, cada vez descobrindo mais uma pecinha do quebra-cabeça.
Voltando. Você deve pensar onde está Deus, que está vendo sua casa sucumbindo as pessoas alucinadas e sua esposa em colapso e desesperada. Bom, ele está sendo adorado. As pessoas estão lá o amando, pedindo autógrafos e fotos, dizendo o quanto seu trabalho era maravilhoso, o quanto seu poema salvou a vida deles, fazendo altares e templos para ele. O homem estava dando atenção a elas, recebendo todo esse carinho dos fãs e incentivando isso tudo! Para ele, era mais importante massagear seu ego e ser adorado, do que dar amor e prestar atenção ao que a esposa estava dizendo, alertando.
O filme termina como um ciclo, pronto para começar de novo. E é a conclusão mais dolorosa que o filme poderia nos dar, e verdadeira. Não existe marcação de tempo, pois isso não faz diferença nessa história, nem em um ciclo. Ele começa no meio, e termina no meio. Não tem um verdadeiro início, e nem um final definitivo. A repetição de algo desastroso é aterrorizante, e existem algumas histórias que já abordam isso, como a Divina Comédia, nos círculos do inferno, que só vão piorando, e no mito de Prometeu.
Essa é a primeira interpretação da história, que assusta e é ao mesmo tempo GENIAL! Houveram cenas que me deixaram levemente perturbada, principalmente a parte do sacrifício de Jesus, acho que por ser católica. Mas, para mim, foi essencial para repensar muitas coisas e observar toda essa história que tanto nos é contada de outra perspectiva. Eu tenho dificuldade em aceitar 100% o que a bíblia diz, pois ela foi escrita por homens, e editada por homens que queriam usá-la como forma de dominação populacional, enfatizando a supremacia masculina, hetero e branca, e essas coisas todas. Não sei o quanto é verdade, não sei quais daquelas palavras são de Deus e quais são do ser humano ganancioso e mesquinho. E a repetição de todas essas histórias por mais de dois mil anos fez com que ela se tornasse algo presente no inconsciente coletivo, e que é tão difícil mudar e lutar contra.
Mas o filme é excelente em jogar na nossa cara o mal que fazemos a Mãe Natureza, que é hostilizada por nós na sua própria casa. Que todos os dias quando acorda tem que lidar com nós, humanos, destruindo tudo que criou com tanto amor e carinho. E, que nos quer fora daqui, com toda a razão, nos expulsando por meio de seus desastres naturais. É apavorante ver nos olhos dela, e graças à atuação maravilhosa de Jennifer, a dor, a raiva e o desequilibro em ter o que é seu, o trabalho de tempos de dedicação, capricho e detalhe, sendo arrancado brutalmente e sem conseguir reagir.
Por fim, tem quem acredite que Mãe Natureza é criação de Deus, e isso dá um pouco a entender no final do filme mesmo, mas não é a interpretação que escolhi. Apesar da diferença de idade, o que acomete a uma diferença de experiências e tal, Mãe Natureza é esposa de Deus. Os dois tem autoridade igual ali na casa. Ela tem tanto poder de criação quanto ele, visto o milagre que está fazendo recuperando a casa do incêndio. Eu escolho acreditar que a entidade Mãe Natureza não é uma criação de Deus, mas é também uma deusa, com seus poderes, sua independência, e que se relaciona ali com nosso Pai. E que ele se apaixonou por ela, e se inspira nela, dada a sua capacidade de criação e a todo seu amor depositado nele, e no mundo. Não acredito que ela esteja abaixo dele, mas que é vítima de seu ego e de seu ímpeto dominador. E, né, vamos concordar, homem tem um talento em diminuir os poderes femininos e acreditar que nós somos dependente deles e a nossa força foi ele quem deu.
Além dessa interpretação criacionista religiosa, temos também uma crítica ao patriarcado. Na história, Jennifer cuida de tudo, tudinho, enquanto Javier está ali, improdutivo, tendo crises de inspiração. O homem não é dos mais carinhosos com a esposa, e não divide tarefas. Quando chega o primeiro hospede, ele decide que ele irá ficar sem consultar a esposa, mas é tarefa dela deixar o ambiente mais confortável para o sujeito. As decisões não são tomadas em conjunto, em momento algum. Apesar de a casa também ser dela, e ela estar ali reformando e cuidando, ela não tem voz ativa. Inclusive, tem uma cena que ele fala pelos dois, algo que não havia sequer sido discutido entre eles, não existe dialogo.
Enquanto ele diz que está tudo bem, que vai dar tudo certo, ele não se importa com o bem-estar da mulher. Ele prioriza os outros a ela, deixando-a sozinha em situações complicadas diversas vezes, nas quais ela tem que encontrar uma força imensa dentro de si própria. E mais, a sua ganância por amor e adoração faz com que a esposa não seja suficiente. Todo o amor e devoção que ela tem para com ele não é o bastante, não importa o quanto ela se esforce, e ele tem que buscar isso nos outros. O amor dos dois não é reciproco, e ele não a vê como uma igual. Tudo isso resulta em uma mulher sozinha, lutando contra o mundo, literalmente. Em algumas ocasiões ela é inclusive um troféu que ele exibe, em fotos, para os “amigos”, como a esposa incrível e bonita.
A relação dos dois e o nível de babaquice do cara é algo que incomoda o filme inteiro! É a definição de boy lixo, marido cilada. Isso reforça a ideia patriarcal do livro sagrado, intensifica o meu afastamento diante da religião em si, e ilustra o cotidiano da grande maioria das famílias hoje no mundo, em 2017. A mulher é quem carrega a casa nas costas, e nunca é devidamente reconhecida pelo se trabalho, às vezes sendo vista como chata e enjoada, o homem é que acaba sendo idolatrado, querido, e gente boa, mesmo não fazendo essas tantas coisas extraordinárias. Eu fiquei surpresa em como Aronofsky, homem privilegiado, conseguiu passar essa ideia e agonia feminina tão bem no filme, foi de uma sensibilidade ímpar.
FIM DOS SPOILERS
Isso é um texto imenso que ilustra só um pedacinho de como me senti diante dessa obra-prima cinematográfica e de tudo que poderia ser discutido. Aronofsky, obrigada mil vezes por esse filme! É um trabalho GENIAL, que exigiu muito estudo, muita pesquisa, muita sensibilidade, muito tudo.
Espero muitas indicações, alguns prêmios, e que nos encontremos de novo no Oscar, o que acho muito provável. Faltam 5 meses para a premiação, principais filmes ainda nem estrearam, mas eu já estou aqui super parcial haha. Assistam ao filme, e venham filosofar e viajar comigo depois, ta bem?
Uma resposta para “Mãe! e as suas broncas repletas de razão, dor e amor”
[…] é uma mistura de Donnie Darko, A Chegada, Mãe!, e uma pitadinha de Stranger Things. De longe, a influência de Donnie Darko é imensa, desde o […]
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